O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social assinou no início de abril um contrato de R$ 12,1 milhões como uma empresa considerada “laranja” para entregar 25,3 mil cestas básicas à população Yanomâmi, assolada por uma crise humanitária. A fornecedora é suspeita de ser usada para burlar licitações no governo anterior e está na mira de uma investigação do Tribunal de Contas da União (TCU). Documentos revelam que a pasta sabia dos indícios de irregularidade e, mesmo assim, decidiu seguir adiante com o negócio, firmado com dispensa de licitação, sem necessidade de concorrência.
Procurado, o ministério informou ao GLOBO ter iniciado um procedimento para rescindir o acordo firmado com a Super Cesta Básica de Alimentos sem que qualquer produto tenha sido fornecido e antes de efetuar qualquer pagamento, “em razão de não cumprimento contratual”. A pasta alega ainda que a empresa “não apresentou impedimento à participação no processo, e, por ofertar o menor preço e demonstrar todas as certidões necessárias, foi realizada a contratação”.
O passo a passo da contratação:
Irregularidades: Relatório do TCU de agosto apontou que empresas que participavam de licitações no governo de Jair Bolsonaro estavam em nome de ‘laranjas’;
Investigação interna: Em janeiro, já no governo Lula, o Ministério do Desenvolvimento Social abriu procedimento interno para investigar as suspeitas levantadas pelo TCU;
Contratação: Apesar das suspeitas, a pasta decidiu contratar de forma emergencial, com dispensa de licitação, uma das empresas apontadas pelo TCU como registrada em nome de laranja para fornecer 25 mil cestas básicas a ianomâmis;
Rescisão: Pouco mais de um mês depois, o ministério anunciou que abriu procedimento para romper o contrato após a empresa não cumprir termos do acordo. Nenhuma cesta foi entregue e nada foi pago.
A Super Cesta Básica de Alimentos foi contratada para providenciar itens como sardinha enlatada, carne seca, farinha e amendoim torrado aos ianomâmis. No papel, a fornecedora é registrada no nome de uma sócia-proprietária, mas na prática, segundo o TCU, é controlada por dois empresários que têm como método utilizar nomes de “laranjas a fim de não cumprirem com suas obrigações, com objetivo fraudulento de dificultar a localização de bens e valores”. Procurada, a Super Cesta Básica não se manifestou.
Um relatório do TCU produzido em agosto do ano passado apontou indícios de que empresas pertencentes ao mesmo grupo dos dois empresários foram usadas para fraudar licitações no governo passado. A Super Cesta Básica de Alimentos chegou a ser proibida de ser contratada pelo poder público por período de um ano, em 2020.
Enquanto a punição estava em vigor, o grupo passou a utilizar outra empresa, com o nome de Popular Cestas Básicas de Alimentos, para disputar licitações. Essa fornecedora, que chegou a firmar um contrato de R$ 39 milhões com o governo de Jair Bolsonaro, está em nome de outro laranja e beneficiário do Auxilio Emergencial, segundo o TCU. Procurada, a Popular Cestas Básicas de Alimentos não se manifestou.
O TCU diz ter identificado os reais proprietários após checar transações financeiras e empréstimos, além de realizar consultas em cartórios e diligências em endereços ligados à firma. Os técnicos da Corte de Contas ainda realizaram inspeções nos endereços dos “laranjas” e constataram que moram em residências que não condizem com o faturamento das companhias. Segundo o TCU, “nenhuma dessas pessoas aparenta condições econômicas compatíveis com o porte das empresas”.
Quando decidiu contratar a Super Cesta Básica de Alimentos, em abril deste ano, o ministério já sabia dos problemas envolvendo a empresa no governo anterior. Em janeiro, um parecer do advogado da União e Coordenador-Geral de Licitações, Contratos e Pessoal do Ministério do Desenvolvimento Social orientou a pasta a abrir uma investigação para a “completa elucidação dos fatos narrados na representação do TCU”.
O secretário-executivo do ministério, Osmar Ribeiro de Almeida Júnior, chegou a enviar em janeiro um ofício ao TCU para comunicar a abertura de um procedimento interno para apurar supostas irregularidades envolvendo a participação da Super Cesta Básica de Alimentos e Popular Cestas Básicas de Alimentos em licitações no governo anterior. Apesar disso, a pasta decidiu contratar uma dessas fornecedoras.
Procurado, Almeida Júnior justificou ao GLOBO a contratação da Super Cesta Básica de Alimentos por dispensa de licitação porque precisava fazer compras de forma emergencial para atender aos indígenas. A contratação direta, sem a necessidade de um processo em que empresas interessadas apresentam suas propostas, é autorizado por lei nos casos de emergência ou de calamidade pública.
— A informação é que havia suspeitas contra ela, mas aí eu pedi as certidões. Se ela mandou as certidões, para nós, ela fica regular — justificou ele.
O jurista Marçal Justen Filho, especialista em Direito Administrativo, avalia que a mera entrega de certidões por parte de uma empresa sob suspeita não obriga o governo a efetivar a contratação.
— Havia indícios que desaconselhavam a contratação. Usualmente, há uma pluralidade de fornecedores. A escolha de um deles em caso de contratação direta funda-se em razões específicas. A mera titularidade de certidões não se constitui em fundamento válido para a contratação, e a nova Lei de Licitações exige a avaliação de riscos — diz ele, acrescentando: — Somente há ausência de autonomia em contratação direta quando houver um único fornecedor no mercado. Diante das circunstâncias, havia indícios de inadequação da escolha.