Tarcísio de Freitas está aproveitando um Projeto de Lei de João Doria do ano passado, cuja legalidade está sendo contestada no Supremo Tribunal Federal (STF), para entregar a toque de caixa terras devolutas de São Paulo aos chamados ‘grileiros’ particulares, todos donos de grandes extensões de terras Brasil afora.
Não bastasse decidir sobre um arcabouço contestado, apesar de ter força de Lei, o governador eleito há menos de um ano ainda escolheu a dedo as duas primeiras beneficiárias: ambas senhoras bem nascidas, criadoras de gado e capim e possuidoras de extensões territoriais em diversos estados.
Uma delas vai adquirir, favorecida pelo Decreto Estadual nº 67.151, de 04 de outubro de 2022, 770 hectares pelo valor de R$ 9 milhões que, após diversos descontos, cai para R$ 2,5 milhões, divididos em prestações a perder de vista, com uma única ressalva: o valor da parcela não poderá ser inferior a R$ 700.
O furor entregatório de João Doria já era esperado – ele deu o Parque do Ibirapuera a grupos de interesses -, tanto que a legalidade dessa Lei aprovada em São Paulo está sendo contestada no STF.
O que chama a atenção no governo Tarcício é a afobação para executar o plano, para não falar da patetice dos envolvidos, um grupinho de primos e agregados.
Nessa primeira leva de resoluções para alienação de áreas públicas constam duas fazendas localizadas na região do pontal do Paranapanema, margeando dois grandes rios brasileiros, Paranapanema e Paraná, e na divisa dos estados de Mato-Grosso do Sul, Paraná e São Paulo.
A primeira, denominada Sucutira, consta como sendo da posseira Patrícia Izidoro Santos Viais, a produtora rural que pretende legalizar uma gleba de 770 hectares por pouco mais de R$ 2 milhões.
A história da outra escolhida é mais curiosa: Claudia Irene Tosta Junqueira, posseira da ‘Fazenda São João’, no município de Marabá Paulista, compõe com dois personagens decisivos para a realização do seu negócio uma relação de compadrio político inacreditável.
Cláudia é da mesma familia do atual secretário de Agricultura, Antonio Júlio Junqueira de Queiroz.
O anterior, Francisco Matturro, que exonerou em janeiro, é seu parceiraço de lida – zebu, aipim, zilo, marchesan, leilão – e de Instagram, plataforma na qual Cláudia brilha em fotos, vídeos, truques criativos e outros merchandising.
Matturro assinou o documento que ordena o desenrolar de alienação da ‘Fazenda São João” a Cláudia Junqueira no segundo semestre do ano passado.
A propriedade, de 1,3 mil hectares, está sendo adquirida por R$ 4,4 milhões – vale R$ 80 milhões.
Se tudo der certo, basta o primo Antonio Julio Junqueira de Queiroz homologar a transação.
Obvio que não é necessário lembrar que Cláudia Junqueira é uma bolsonarista de 4 costados, com direito a compartilhar absurdos dos filhos do ex-capitão.
Invadiram as terras do Estado expulsando e matando índios e quilombolas
Terras devolutas são remanescentes de sesmarias não colonizadas e que foram transferidas ao domínio público em 1891.
Com os anos, foram invadidas por grileiros que mantiveram a posse mediante violência e opressão, expulsando e matando os primeiros moradores, compostos por índios e quilombolas.
Criminalizar dos movimentos sociais
Os especialistas entendem a afobação nas alterações de Leis para apressar as entregas de novas terras pelo Estado por dois motivos: primeiro porque entre os líderes do Agro se acredita que o momento é propício para criminalizar os movimentos sociais que atuam neste setor; o segundo é pior um pouco: é preciso correr para garantir a mamata, já que a Lei de Terras no Brasil pressupõe exatamente o contrário do que está mandando fazer o governador de São Paulo.
A prioridade central das áreas devolutas está na distribuição em módulos menores, para diversificar e atingir um número maior de beneficiados.
O que João Doria fez e o bolsonarismo abraçou foi distorcer a legislação que já existia e forçar uma nova, favorecendo poucos produtores com extensões a perder de vista.
Para o professor Paulo Niederle, da cadeira de sociologia rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que recebeu os documentos compilados pelo DCM, o caso é de casuísmo puro e simples.
“Me parece típico de um modo patrimonialista de pensar o Estado, em que as relações públicas e privadas se confundem de tal modo que os dispositivos institucionais são utilizados em benefício daqueles grupos privados e famílias que mantêm relações próximas com os governos”.
Ele lembra a subversão do processo:
– Quando essa discussão iniciou, nos anos 2000, o objetivo central era a regularização das pequenas propriedades rurais, justamente para impedir o avanço violento de fazendeiros, das madeireiras e das mineradoras sobre essas áreas. No entanto, com o passar do tempo, e sobretudo a partir do governo Bolsonaro, foram os grandes proprietários que passaram a se utilizar desses dispositivos infralegais para regularizar terras que, muitas vezes, tiveram sua posse associada a práticas ilegais.
Em outra frente desta batalha, Tarcísio de Freitas investe numa cruzada contra os movimentos sociais, focando no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que ele prometeu extinguir.
No campo da terra, os ‘cidadãos de bem’ – muitos, como se sabe, não sustentam uma simples busca no Google – estão se sentindo em casa sob as bençãos de novo governador de SP.
*Por DCM