Anistia, ainda que tardia.
Bernardo Mello Franco*
Comissão começa a exorcizar legado do bolsonarismo, que tentou culpar vítimas por violências que sofreram.
Num dia marcado pelo retorno de Jair Bolsonaro e pela apresentação do novo marco fiscal, a notícia passou quase despercebida. Não deveria. Depois de quatro anos, o Estado brasileiro voltou a reconhecer crimes praticados pela ditadura militar. Foi a retomada da Comissão de Anistia, que havia sido sequestrada pela extrema direita no governo passado.
Com nova composição, o órgão promoveu ontem os primeiros julgamentos de 2023. A sessão virou uma catarse coletiva. “São processos doloridos, de sofrimento, mas que precisam vir à tona”, avisou o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, André Carneiro Leão. Seguiram-se relatos de perseguições, prisões ilegais e torturas praticadas pelo regime autoritário.
Herdeiro dos porões, Bolsonaro entregou a comissão a notórios defensores do arbítrio, como o general Luiz Eduardo Rocha Paiva. Capturado, o órgão negou 95% dos pedidos de anistia. Ontem quatro desses processos foram revistos.
“Gostaria de avisar que vocês estão à frente de uma terrorista sanguinária”, ironizou a professora Cláudia de Arruda Campos, de 74 anos, que esperou os últimos 15 pelo julgamento. Em 1968, ela foi perseguida, presa e forçada a deixar o magistério. Militava na Ação Popular, organização de esquerda que não atuou na luta armada. Mesmo assim, foi chamada de “terrorista” por Rocha Paiva. “A arma mais poderosa que já peguei foi esta”, respondeu ontem, apontando para o microfone.
A comissão também reconsiderou o caso do deputado Ivan Valente, de 76 anos. Preso em 1977, ele foi brutalmente torturado no DOI-Codi do Rio. Os agentes o submeteram à chamada cadeira do dragão, método em que a vítima era amarrada e submetida a choques elétricos na cabeça, nos membros e nos órgãos genitais. No ano passado, Bolsonaro debochou das violências sofridas pelo rival.
A Constituição afirma que o Estado deve identificar e indenizar os cidadãos perseguidos por razões políticas. A tarefa cabe à Comissão de Anistia, criada no governo Fernando Henrique Cardoso. O bolsonarismo aparelhou o órgão e distorceu sua função, tentando culpar as vítimas pelas perseguições que sofreram.
Reconhecer os crimes da ditadura não é só um acerto de contas com o passado. “Os atos golpistas de 8 de janeiro foram mais uma prova cabal de que o esquecimento e o silenciamento cobram um preço altíssimo”, disse ontem o ministro Silvio Almeida. Boa reflexão para um 31 de março, aniversário do golpe de 1964.
*O Globo