Em 28 de fevereiro de 1972 o então presidente norte-americano Richard Nixon fez uma histórica visita à República Popular da China, um evento considerado por muitos historiadores do século XX como central para o início da Nova Ordem Mundial. A visita precipitou uma política que consagrava o afastamento definitivo da China da esfera de influência da URSS e um processo gradual de abertura econômica que culminaria anos mais tarde nas Zonas Econômicas Especiais idealizadas por Deng Xiaoping.
Neste momento em diante não apenas novas oportunidades de negócios se abriram para o Ocidente como também a crença de que a China, década após década seria dominada pelos tentáculos do Imperialismo. A rota trilhada na mente de conselheiros de Nixon como Henry Kissinger era a de que a parceria de ganho mútuo levaria o gigante asiático a um processo de corrosão do Partido Comunista Chinês e o alinhamento do país às doutrinas de dominação norte-americanas que já tinham sido experimentadas em países como Japão, Coreia do Sul, Hong Kong, Cingapura e demais países dos chamados “Tigres Asiáticos” desde as décadas de 1950 e 1960.
O que não contavam é que as Zonas Econômicas Especiais não criaram no médio e longo prazo o efeito sonhado por Washington. O Partido Comunista Chinês jamais perdeu o controle da abertura dos portos aos empreendimentos ocidentais. De fato, o Ocidente ganhou muito com a abertura econômica no país asiático. A China se tornou a “fábrica do Mundo” e junto desta prática encabeçou a maior onda de gravidade econômica de que se tem notícia jogando para o Ocidente lucros exorbitantes e, como efeito colateral, uma depressão inédita na capacidade de luta e poder político dos trabalhadores do Mundo inteiro com a oferta de mão de obra extremamente barata e abundante. A situação favoreceu tanto os principais mercados do Ocidente que estes emplacaram uma ofensiva que durou quase 40 anos: o Neoliberalismo. O fato da China ter injetado quase que, da noite para o dia, um contingente de bilhões de trabalhadores no mercado de trabalho a preços unitários baixíssimos reduziu drasticamente as expectativas de valorização do Capital-Trabalho. O projeto era win-win para americanos e britânicos, ou seja, a redução da força política dos trabalhadores em escala planetária, sua intensiva precarização associada da possibilidade sedutora de Ocidentalização em etapas da China representavam o Mundo dos sonhos. A confiança era tamanha que em plena década de 1990 os EUA não tinham pudor de se lançar em “cavalgadas imperiais” como aquelas exemplificadas pelas doutrinas do Shock and Awe como a Operação Tempestade no Deserto (invasão do Iraque em 1991), ampliação de bases no Oriente Médio, Operação Liberdade Duradoura no Afeganistão em 2001 e Segunda Guerra do Golfo Pérsico (2003-2008). Pretextos políticos pontuais à parte, estas operações de força e prepotência foram conduzidas sem que os altíssimos riscos civilizacionais, políticos e econômicos fossem levados a sério, afinal dentro do âmbito do Conselho de Segurança da ONU, China e Rússia eram considerados até então obstáculos menores – os dois países não aparentavam até então a força política suficiente para se opor concretamente aos auspícios da OTAN.
Ocorre que os sonhos costumam acabar no alvorecer de um novo dia, em especial se as ilusões atingem níveis estratosféricos e se desconectam da realidade concreta. A China começou conscientemente a dar um salto virtuoso rumo à mudança na correlação de forças global quando em 2008 irrompeu um episódio traumático, o quase colapso total do Neoliberalismo (a partir da quebra do Banco Lehman-Brothers). Começava ali a aceleração da decadência econômica ocidental e a ascensão veloz da China não mais como ferramenta lateral de barganha estratégica mas como uma máquina irrefreável de desenvolvimento nacional. Os chineses pouco a pouco ampliaram seu mercado interno, investiram em obras de infraestrutura, enquadraram os empresários chineses ao projeto nacional-desenvolvimentista, reafirmaram sua soberania nacional e passaram a ser os maiores investidores em empresas chinesas de competitividade global. Além disso, se projetaram ao Mundo como alternativa de parceria estratégica com a oferta de crédito e auxílio financeiro a um sem número de países em praticamente todos os continentes do globo terrestre – inclusive na vizinhança imediata dos EUA.
Os americanos perceberam que haviam criado um monstro que se apresentava para o Mundo como a próxima potência econômica, política, militar, tecnológica e científica. Não tardou para que durante a administração de Donald Trump uma guerra comercial contra a China começasse. Trump pode não ser ser bem visto pela mídia mainstream mas suas principais políticas estão todas alinhadas com o complexo militar-industrial dos EUA que é o que realmente banca as bases do Império. A condenação pública de Trump como um expoente de Extrema-Direita nos EUA é apenas “espuma superestrutural”, uma forma de cozinhar a situação perante a opinião pública norte-americana e mundial haja visto que o grosso da população autodeclarada “pensante” têm dificuldades em entender as verdadeiras engrenagens que movem os bastidores. Sensíveis a falas de Twitter, e predispostas a enxergar o Mundo da política com o filtro dos embates de celebridades, reduzem as questões políticas a temas ligados a comportamentos e conflitos ideológicos rasos. Esta massa crítica pós-moderna passa muito longe de avaliar o que quer que seja quando o assunto é o poder concreto do Imperialismo e as lutas que se travam no interior da Ordem do Capital. Não é à toa que Joe Biden dos democratas, “vendido” como grande “nêmesis” de Trump continua a praticar as mesmas políticas anti-China de seu antecessor. Na essência, Biden e Trump são lados opostos de uma mesma moeda, ambos se colocam como líderes decadentes de um Império que vê pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial e Guerra Fria um adversário duríssimo. A China chegou e a China é uma realidade, o que fazer?
A Pandemia de Covid-19 em 2020 acelerou o que os americanos já almejavam antes com a guerra comercial com a China, ou seja, adotar práticas protecionistas e frear a própria Globalização que eles próprios passaram a perder para a China, ou seja, vendo que estavam em desvantagem decidem que a solução é desfazer a arena e acabar com o jogo que eles próprios haviam criado. Não é à toa que recai sobre a Pandemia de Covid-19 inúmeras dúvidas e suspeitas geopolíticas pelo timing perfeito que ela se desenvolveu. Embora os EUA busquem se esquivar de qualquer acusação sobre o aproveitamento da Pandemia para fins de guerra contra a China, os mesmos acusam a China de serem os grandes causadores do vírus, o que não faz sentido pois a Pandemia freou de forma alarmante os fluxos comerciais e as cadeias produtivas de valor, setores que a China passou a despontar a partir de 2010 e que, aliás, os chineses se empenham dia e noite para recuperar. Um dia saberemos a verdade sobre o que há por trás do Covid-19, entretanto, é inegável que a Pandemia será lembrada pelos historiadores como a “Pandemia mais conveniente de todos os tempos” – ela surgiu num contexto em que “deveria surgir” do ponto de vista da guerra EUA-China. Será que devemos acreditar em coincidências?
Mas o que não deve ser ignorado é a busca incessante dos EUA em criar uma nova ideologia anti-China no Mundo. Não há uma única semana sem que os grandes conglomerados de mídia ocidentais não pautem as acusações de abusos da China contra a pobre e “indefesa população local” de 1 bilhão e 300 milhões de habitantes. Seja no combate contra o Covid (quando tratam da política do Covid-Zero), sejam os supostos abusos de espionagem da China via Tik Tok, os balões de espionagem, os magnatas chineses que “desaparecem” misteriosamente – uma insinuação de que Pequim “elimina” empreendedores, as insinuações de que a China abusa dos direitos humanos entre outras inúmeras e incontáveis acusações. Os EUA utilizam até mesmo a própria cultura milenar chinesa para incriminar a China Popular.
Em anos recentes, um espetáculo norte-americano idealizado por chineses opositores do regime comunista está em alta e recebe amplo apoio dos EUA para realizar turnês Mundo afora. Trata-se do espetáculo “Shen-Yun”, que é uma espécie de ópera chinesa que retrataria os grandes feitos da China “pré-Comunista”. O espetáculo recebe muito apoio financeiro e suas propagandas são alardeadas em tons elogiosos por espectadores endinheirados dos EUA. Suas publicidades na internet recorrem até mesmo a depoimentos de celebridades de Hollywood que alegam que “Shen-Yun” seria uma experiência “divina”. Este espetáculo roda o Mundo com suas apresentações e é voltado para um público de elite. No Brasil, o Shen-Yun tem seus ingressos mais baratos vendidos a cerca de R$ 400,00. No fundo, se o objetivo é popularizar a narrativa anti-China Comunista, ao que tudo indica pelos preços cobrados e pelo público-alvo do espetáculo, o ódio contra a China continental permanecerá no nicho específico da classe média alta. Porém, isso não significa que um dia não possa penetrar nas camadas mais baixas.
O que poucos sabem é que sobre o espetáculo Shen-Yun recaem verdades ainda mais inconvenientes do que uma mera expressão artística de contestação a Pequim. Trata-se de um espetáculo organizado por uma seita perigosa de Extrema Direita com sede em Nova York, a “Falun Gong”. Algumas das defesas do Falun Gong inclui, dentre vários absurdos, o negacionismo científico. Desta forma, como os EUA alegam defender a Democracia na China Popular dando vazão e apoio a grupos opositores do regime identificados com o pensamento da Extrema Direita? A China recentemente expressou seu descontentamento com o espetáculo e tem buscado convencer países que recebem turnês do Shen-Yun a impedir suas apresentações. A alegação de Pequim é de que se trata de mais um vetor da Sinofobia que está sendo patrocinada por Washington.
Não sabemos ainda o que essa guerra cultural pode trazer de consequências mas as experiências pregressas na Historiografia mundial não são animadoras. Quando um poder em decadência se vê confrontado por outro poder em ascensão, as coisas não costumam acabar de modo amistoso (vide I Guerra Mundial). Ao mesmo tempo que esse confronto se aproxima ele também se torna improvável devido aos óbvios problemas envolvidos como os arsenais nucleares dos contendores. Entretanto, podemos extrair diversas lições a partir dele. Uma boa parte da retórica de defesa da “Democracia” alardeado pelos EUA nos últimos 70 anos não passa de um estratagema cínico para a manutenção de um poder unipolar e uníssono, uma ditadura global que não admite concorrência. Os EUA estão em pânico e são capazes de qualquer coisa para impedir sua perda de influência.