Demarcando o início de seu governo como um retorno à era da razão após quatro anos de obscurantismo, o presidente Lula recebeu 106 reitores de universidades e institutos federais de todo o país no Palácio do Planalto, nesta quinta (19). No discurso evitou chamar Jair Bolsonaro pelo nome, preferindo referir-se a ele como “o coisa”.
“Sei do obscurantismo que vocês viveram nesses últimos quatro anos e quero dizer que estamos saindo das trevas para voltar à luminosidade de um novo tempo”, afirmou aos reitores. A comparação não é exagerada. As universidades públicas foram tratadas como inimigas por sucessivos ministros da Educação na gestão anterior e seus professores, estudantes e funcionários tachados de criminosos e pecadores pelas milícias bolsonaristas.
Nesse período, o ex-presidente preferiu investir na “Universidade do WhatsApp”, que substitui o conhecimento por desinformação e crendices. Tanto que a ciência foi repetidamente atacada por defender a vacina contra a covid-19, enquanto os representantes da Universidade do WhatsApp ensinavam que bom mesmo eram remédios inúteis para a doença, como cloroquina e ivermectina.
Em seu discurso, Lula deixou claro que aquele momento era um marco, chamando-o de “encontro da civilização” – contrapondo com a barbárie do antecessor. O seu governo prometeu respeitar a autonomia universitária e melhorar os recursos para pesquisas.
Ao falar sobre o fanatismo da extrema direita, em oposição à ciência e ao conhecimento, que “odeia tudo aquilo que não combina com o que eles pensam”, Lula enumerou líderes internacionais desse campo, como Donald Trump. Na hora de citar Bolsonaro, disse que não desejava falar o nome do antecessor e o chamou de “o coisa”.
Durante quatro anos, o Ministério da Educação foi usado como instrumento para a guerra cultural, tentando moldar o pensamento brasileiro à imagem e semelhança do bolsonarismo. De ataques ao Enem à precarização da pesquisa científica e perseguição de professores, houve um desmonte que levará décadas para ser corrigido.
Isso sem contar que a pasta foi envolvida em uma série de denúncias de corrupção. Por exemplo, em março de 2022, o jornal Folha de S.Paulo divulgou áudio mostrando o então ministro Milton Ribeiro afirmando que “foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim” a demanda por acolher as necessidades do pastor Gilmar Santos e de seus “amigos” prefeitos, interessados em recursos públicos.
Santos e o pastor Arilton Moura integravam o “gabinete paralelo” montado no MEC, segundo revelou o jornal O Estado de S. Paulo. Para tanto, cobravam propina em dinheiro, bíblias e até barras de ouro. Descoberto o esquema, o ministro caiu. Mas gravações de conversas telefônicas apontam que ele continuou sendo ajudado pelo presidente, que o avisou de que a Polícia Federal estava em sua cola, atrapalhando uma investigação.
‘Uma filha da faxineira pode ser médica’, promete Lula
O ponto mais forte do discurso de Lula, contudo, foi ao falar sobre a ideia de oportunidade.
“A maioria do povo nascia só para trabalhar. Esse país nunca será grande se a gente não virar essa página da História, como já provamos ser capaz de ser feito. Uma filha da faxineira pode ser médica, um filho de um pedreiro pode ser engenheiro. Um trabalhador de cemitério pode ser diplomata. As pessoas podem, o que elas precisam é chance. O que o governo tem que fazer é criar as oportunidades”, disse.
O que vai ao encontro das ideias do economista indiano Amartya Sen. Ou seja, para alcançar o desenvolvimento é necessário eliminar privações que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercerem a condição de protagonistas de sua própria vida.
Isso é fundamental, mas o governo vai enfrentar um país em que parte de sua população acredita no oposto. Ou seja, a culpa por ser pobre e não ter estudado é totalmente de quem não estudou.
Todos concordam que a educação é a saída, mas afirmar que ela está ao alcance de todos profere é uma bobagem. Como na história do Joãozinho, aquele self-made man, que é o exemplo bombado à sociedade por instituições que acham que as condições materiais importam menos do que a “força de vontade”.
Joãozinho (personagem fictício, mas poderia não ser) comia biscoitos de lama com insetos, tomava banho em rios fétidos e vendia ossos de zebu para sobreviver. Quando pequeno, brincava de esconde-esconde nas carcaças de zebus mortos por falta de brinquedos. Mas não ficou esperando o Estado, nem seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou (contando com a ajuda de um mecenas da iniciativa privada, que lhe ensinou a fazer lápis a partir de carvão das árvores queimadas da Amazônia), andando 73,5 quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de bananeira como caderno. Hoje é presidente de uma multinacional.
Enfim, quando alguém vende a história de Joãozinho quer apontar se alguém não consegue ser como ele e vencer por conta própria sem depender de uma escola de qualidade, com professores bem capacitados, remunerados e respeitados, e de um contexto social e econômico que te dê tranquilidade para estudar, a pessoa merece nosso desprezo.
Brasil larga professores e estudantes à própria sorte
O país foi conseguindo universalizar o seu ensino básico, mas isso não veio acompanhado de um aumento na qualidade média da educação. Grande parte dos jovens de escolas públicas têm entrado no ensino médio sabendo apenas ordenar e reconhecer letras, mas não redigir e interpretar textos.
Enquanto isso, o magistério no Brasil continua sendo tratado como profissão de segunda categoria. Todo mundo adora arrotar que professor precisa ser reconhecido, mas adora chamar de vagabundo quando eles entram em greve para garantir esse direito. Quando o ministro da Educação, Camilo Santana, anunciou o aumento do piso da categoria, muitos rangeram os dentes dizendo que professores são privilegiados.
“Ah, mas Sakamoto, seu chato! Eu achei linda a história da Ritinha (personagem também fictícia, em tese), do Povoado Decastigo, que passa a madrugada encadernando sacos de papel de pão e apontando lascas de carvão, que servirão de lápis, para seus alunos da manhã seguinte. Ela sozinha dá aula para 176 pessoas de uma vez só, do primeiro ao nono ano, e perdeu peso porque passa seu almoço para o Joãozinho, um dos alunos mais necessitados. Ritinha, deu um depoimento emocionante a um repórter, dia desses, dizendo que, apesar da parca luz de candeeiro de óleo de rato estar acabando com sua visão, ela romperá quantas madrugadas for necessário porque acredita que cada um deve fazer sua parte.”
Ritinha simboliza a construção de um discurso que joga nas costas do professor a responsabilidade pelo sucesso ou o fracasso das políticas públicas de educação. Esqueçam o desvio do orçamento da educação para pagamento de juros da dívida, esqueçam a incapacidade administrativa e gerencial, o sucateamento e a falta de formação dos profissionais, os salários vergonhosamente pequenos e planos de carreira risíveis, a ausência de infraestrutura, de material didático, de merenda decente, de segurança para se trabalhar.
Joãozinho e Ritinha são alfa e ômega, os responsabilizados por tudo.
Vocês acham sinceramente que “a pessoa é pobre porque não estudou ou trabalhou”? Acreditam que basta trabalhar e estudar para ter uma boa vida e que um emprego decente e uma educação de qualidade é alcançável a todos e todas desde o berço? Acham que todas as leis foram criadas para garantir Justiça e que só temos um problema de aplicação? Não se perguntam quem fez as leis, o porquê de terem sido feitas ou questiona quem as aplica?
Educar pode significar libertar ou enquadrar – inclusive libertar para subverter. Que tipo de educação estamos oferecendo? Que tipo de educação precisamos ter?
Uma educação de baixa qualidade, insuficiente às características de cada lugar, que passa longe das demandas profissionalizantes e com professores maltratados pode mudar a vida de um povo?
Os fãs do Joãozinho e da Ritinha acham que sim. Não é à toa. Muitos deles acreditam que é cada um por si e Deus acima de todos.
*Sakamoto/Uol