Lisandra Paraguassu e Anthony Boadle, Reuters – “Tentaram me enterrar vivo, e eu estou aqui.” A frase, uma das únicas de improviso, foi dita por Luiz Inácio Lula da Silva em seu discurso poucas horas depois de ter confirmado sua terceira vitória eleitoral e resumiu a trajetória de um político que, após 580 dias na cadeia, volta à Presidência para defender seu legado 12 anos após ter deixado o poder com 87% de aprovação.
O Lula que começa um inédito terceiro mandato desde a redemocratização assume um Brasil diferente e é, de certa forma, diferente também. Ambos foram impactados pela experiência da prisão por corrupção do petista, cuja condenação seria anos depois deixada sem efeito pela Justiça, mas seguiria como um símbolo da divisão política e social que lhe deu uma apertada vitória sobre o ultradireitista Jair Bolsonaro.
O petista aprendeu com três candidaturas presidenciais fracassadas nos anos 90 a suavizar discursos para se apaziguar com agentes financeiros e o poderoso setor privado do Brasil. Agora, promete unir o país, mas fala de forma ainda mais veemente contra a fome e pobreza, trouxe para o discurso uma inédita ênfase na pauta antirracista, de gênero e ambiental e desafia constantemente o que chama de “tal do mercado”.
“A reação inicial ao Lula 3.0 na Faria Lima não é favorável. Não é surpreendente que a bolsa tenha caído, as taxas de juros estejam altas e o real esteja enfraquecido”, comentou o economista André Perfeito.
Perfeito ressalta, no entanto, que não espera nenhuma loucura econômica no novo governo, lembrando que o Ministério da Fazenda foi entregue ao tido como principal aposta de Lula para sua sucessão, Fernando Haddad.
“Não acho que Lula é um homem ressentido que vai fazer agora um ajuste à esquerda”, segue o economista, que vê na falas do tipo “quer chiar, chia” dedicadas à Faria Lima também uma estratégia para agradar sua base mais leal de esquerda.
Aliados do petista disseram à Reuters que boa parte desse figurino novo de Lula foi reforçado nos meses de prisão, que também o tornaram mais paciente, mas também mais centralizador e consolidaram um grupo de apoiadores leais em torno dele.
Lula leva consigo para o poder um governo que foi, em parte, forjado durante os dias em Curitiba. Ao seu lado estão nomes que nunca saíram de perto, como a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, Haddad, e seu secretário no instituto Lula e futuro chefe de gabinete, Marco Aurélio Santana Ribeiro, o Marcola –que mudou para o Paraná durante período da cadeia.
“O processo que ele passou alargou mais a visão dele: ele hoje tem um universo mais amplo de pessoas com quem conversa, com quem decide as coisas, mas, ao mesmo tempo, reforçou muito opapel dele próprio. Hoje ele centraliza mais as decisões nele mesmo, fruto dessa experiência”, analisa o senador Humberto Costa, um dos aliados mais antigos do presidente eleito.
Durante a campanha, a Reuters ouviu reclamação de auxiliares dando conta de que a centralização nas mãos de Lula havia atrasado decisões até burocráticas que por vezes levaram a disputas internas, num estilo que será posto à prova agora no Planalto.
Nesta configuração herdada de Curitiba, tem destaque Rosângela Silva, a Janja, a agora primeira-dama que começou a namorar Lula poucos meses antes de ele ser preso e se tornou uma influente figura do núcleo duro lulista.
Muitos holofotes estarão voltados para mapear o papel de Janja no governo, após ela ter organizado a festa da posse e se mostrado interessada em temas de comunicação.
A socióloga Janja também é creditada por despertar no presidente eleito uma consciência maior sobre os direitos femininos. Ao lado do relacionamento novo com Janja, as leituras em Curitiba e as conversas do período ajudaram a reforçar uma agenda não só de gênero, mas também sobre o racismo e a crise climática que, se fazia parte da cartilha tradicional da esquerda, ganhou cada vez mais relevância e impacto social desde que o petista deixou o Planalto.
“(Na cadeia, Lula) compreendeu que diferentes sujeitos políticos apareceram no cenário. Isso proporcionou a ele um novo tipo de reflexão, organizando seu entorno político e trazendo para a primeira cena de seu próximo governo esta diversidade racial, social e política”, disse o ex-ministro de Lula Tarso Genro.
Pressionado a forjar uma maioria no Congresso, o presidente desenhou uma Esplanada com 37 pastas, cuja maioria será comandada por homens maduros e do establishment partidário.
As mulheres ficaram com 11 destes postos, um recorde, ainda que demandas como a de que o Brasil tivesse pela primeira vez uma chanceler não tenham sido atendidas.
Indicado para ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira escolheu Maria Laura da Rocha como secretária-geral do Itamaraty, algo também inédito, mas a campanha pela defesa de mulheres em postos-chave segue, mais um sinal de que a demanda geral por maior representação feminina na administração será uma pressão permanente.
“Estou convencida de que o presidente Lula é sensível (à questão). O ministro Mauro Vieira pode oferecer ao presidente indicação de nomes de mulheres para algumas das principais embaixadas do Brasil no mundo, onde as mulheres tenham visibilidade, como Buenos Aires, Washington e Berlim”, diz a embaixadora Irene Vida Gala, uma das vozes proeminentes deste debate.
Essa sensibilidade de Lula ecoa as leituras na qual se concentrou em seus 580 dias na cadeia.
Ao ser preso, em 7 de abril de 2018, amigos o aconselharam a escrever um diário. O presidente eleito, no entanto, achou que não teria o que registrar nas horas em que passava, na maior parte do tempo, sozinho.
As visitas se concentravam em dois dias da semana: nas segundas, líderes de todas as religiões, em
uma romaria organizada principalmente pelo ex-ministro Gilberto Carvalho. Nas quintas, família, a então namorada Janja e líderes políticos do Brasil e do mundo. Nos demais, apenas os advogados.
Lula, então, lia. E, contam amigos, debatia com ele mesmo. Escrevia cartas e bilhetes às vezes, e fazia encomendas. Foram mais de 40 livros que, de vez em quando, chegavam como recomendações às suas redes sociais pelas mãos de assessores.
Em seus primeiros dias em Curitiba, um dos primeiros livros que o presidente eleito ganhou foi “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves. A história de uma mulher negra escravizada aos 8 anos perpassa a história da escravidão no Brasil e suas quase mil páginas acompanharam Lula por várias semanas. Foram parte do processo que despertaram Lula ainda mais para o tema do racismo.
Entre seus livros preferidos estão “Escravidão”, de Laurentino Gomes, “A Elite do Atraso”, do Jessé Souza; “A Fome”, de Martín Caparrós. Também biografias, como de Carlos Marighella, Fidel Castro, Nelson Mandela, e livros sobre política, como o “Lulismo em Crise”, de seu ex-porta-voz André Singer, que discute justamente o que aconteceu com o PT e a política no país depois do impeachment de Dilma Rousseff.
“Quero pedir desculpas a vocês pela emoção, porque quem passou o que passei nesses último anos e está aqui agora é a certeza de que Deus existe e de que o povo brasileiro é maior do que qualquer pessoa que tentar o arbítrio neste país”, disse Lula, que chorou quando diplomado pela Justiça Eleitoral em dezembro.
Sem uma ampla lua de mel da opinião pública garantida –pesquisa Datafolha deste domingo mostra que 51% esperam uma gestão melhor que a anterior–, Lula, que tem como parâmetro e pressão o seu próprio sucesso anterior, em condições econômicas globais mais desfavoráveis, não esconde uma ambição ainda maior depois da prisão, diz Humberto Costa.
“(Ele quer) deixar a marca, definitiva, o legado, e ao mesmo tempo fazer uma mudança estrutural no Brasil que possa ter um efeito duradouro”, disse Costa.