Miriam Leitão – É um erro tratar como eventos isolados o que é sistêmico. Bolsonaro tem a violência como projeto político e as mulheres e a imprensa são alvos.
Nada tem acontecido por acaso. O novo ataque que a jornalista Vera Magalhães sofreu é parte de um contexto muito maior e que põe o próprio país em perigo. O agressor, o deputado do Republicanos Douglas Garcia, usou a mesma expressão jogada contra Vera por Bolsonaro. O presidente da República tem a violência como projeto. Por isso fez o incessante trabalho de ampliar o acesso às armas, vociferar contra pessoas que ele escolhe como alvo e jamais desautorizar ato truculento de seus seguidores. Bolsonaro escolheu a imprensa como um dos alvos, e dentro dela mira pessoas, porque assim é o método. Ao individualizar, ele autoriza o ataque e canaliza a raiva que ele alimenta com fins políticos.
O Repórteres sem Fronteira divulgou relatório do primeiro mês de campanha. Nele ocorreram 2,8 milhões de postagens com ofensas ou agressões a jornalistas, 88% deles contra mulheres. O chavismo fez isso também na Venezuela. Hugo Chávez apontava os jornalistas que ele definia como inimigos. No fim, foram fechados vários jornais e emissoras. O governante autoritário quer eliminar a imprensa e para isso começa intimidando alguns jornalistas.
Não por acaso as pessoas escolhidas para serem assediadas pelo presidente e por seus seguidores são mulheres. Bolsonaro com sua aversão às mulheres organiza a misoginia e alimenta o ressentimento contra o avanço feminino. Na entrevista que ele concedeu na terça-feira ao SBT, ele mentiu e cometeu um ato falho. “O número de violência contra a mulher caiu assustadoramente”. Isso é mentira, a maioria dos indicadores é de alta e, se tivesse caído, a palavra para definir não seria “assustadoramente”. Bolsonaro é bem explícito quando fala e age. Não ver os sinais em cada palavra ou ato é uma insensatez.
O presidente da República gosta da violência, ele sente prazer nela. Ele se regozija em saber, ver ou provocar o sofrimento alheio. É isso que explica sua louvação da tortura. Mas é preciso ver além da perversão. O trabalho de Bolsonaro tem tido um objetivo, uma direção, é parte do projeto maior de elevar o conflito dentro da sociedade brasileira e realizar seu sonho autoritário para o Brasil.
O livro de Juliana Dal Piva sobre a corrupção da família Bolsonaro, “O negócio do Jair”, resgata a frase que ele disse em uma entrevista à Bandeirantes, em 1999. “Através do voto, você não vai mudar nada neste país. Nada, absolutamente nada. Você só vai mudar, infelizmente, quando nós partirmos para a guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando 30 mil pessoas e começando por FHC.”
Esse indicador antecedente do seu projeto deveria ter sido punido com o rigor da lei. Era uma pessoa com mandato que em uma única declaração defendia a morte do então presidente, lamentava não terem morrido outros 30 mil e propunha a guerra civil. Não levar a sério um inimigo declarado e violento da democracia foi um dos erros da democracia em relação a Jair Bolsonaro.
Os CACs são a semente de uma milícia armada de Bolsonaro. Nós sabemos disso. E o país finge que ali estão esportistas ou inofensivos colecionadores. Desde o início do governo, o número de pessoas com licença para portar armas de fogo cresceu 473%, segundo o Anuário da Segurança Pública. São civis organizados em clubes, por exemplo, o que eleva exponencialmente o risco de conflito, de assassinatos e de desvio de armas para criminosos no Brasil.
É um erro tratar como eventos isolados o que é sistêmico. Com o culto às armas e os ataques a pessoas ou instituições, Bolsonaro quer atingir a democracia. A começar do direito de voto. Intimidar eleitores de outros candidatos, especialmente lulistas, a não irem votar. Cria-se um ambiente de temor para acuar o cidadão.
O Brasil pode avaliar cada fato isoladamente, pode se indignar e protestar contra uma morte, um assédio. Pode se assustar com os números cada vez maiores de armas, artefatos e munições nas mãos de seguidores de Bolsonaro. Mas o mais eficiente para se proteger é o país ter a visão de conjunto. Foram quase quatro anos de execução do plano de impor a truculência como a arma política na busca do projeto autoritário. Não pergunte se haverá um golpe. Entenda que há um processo para o qual o país está sendo arrastado, com a conivência das Forças Armadas, a displicência de algumas instituições e autoridades, a bênção de algumas igrejas. Esse é o golpe. O Brasil está vivendo neste momento o maior risco desde a sua constituição como Estado independente. O que quer Bolsonaro? Ele mesmo disse há 25 anos. Uma guerra civil.
*Com O Globo