Também agora, o preço da liberdade é a eterna vigilância

Também agora, o preço da liberdade é a eterna vigilância

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Veja por que mobilização em favor da democracia tornou-se ainda mais necessária .

Reinaldo Azevedo – Digamos que um manto de bom senso se desdobrasse desde o empíreo e cobrisse o Ministério da Defesa, muito especialmente o general Paulo Sérgio Nogueira, seu titular, num evento verdadeiramente maravilhoso, sobrenatural e solene. Pronto! No dia 12 próximo, tudo estaria resolvido. Restaria a Jair Bolsonaro vociferar entre lunáticos, alegando supostas fragilidades no sistema de votação em caso de derrota. Não será assim. Logo, você sabe qual é o preço da liberdade.

Os nove militares escalados por Nogueira já estão examinando o código-fonte das urnas, depois de um ofício “urgentíssimo” por ele enviado ao TSE solicitando a inspeção do dito-cujo —”haja vista o exíguo tempo disponível até o dia da eleição”, escreveu. Não há erro de concordância, haja vista que “haja vista” é expressão invariável. Quando os que dispõem de tanques recorrem a uma linguagem empolada, quase sempre o que se tem é truculência disfarçada de formalidade burocrática.

Os dados estavam disponíveis havia dez meses quando o documento simulou reivindicar algo que lhe estaria sendo sonegado por desídia inexistente. Os militares darão seu parecer um dia depois da leitura de duas cartas em favor da democracia. Uma delas expressa a vontade de amplos setores da sociedade civil e traduz a confiança da esmagadora maioria da população no voto eletrônico. A outra, de igual teor, traz a assinatura de entidades que representam o trabalho, o capital, a ciência —a vida, enfim, em sociedade.

Nos dois casos, e cobrei isso aqui tantas vezes, toma-se o regime democrático como valor inegociável e se afirma a supremacia de regras pactuadas para administrar conflitos, na certeza de que sempre serão imperfeitas, demandando permanente aperfeiçoamento, mas preferíveis a arbítrios salvacionistas que redundam em violência, exclusão e morte —abismo político, moral e ético de todas as ditaduras.

Tenho pouca esperança de que o ministro virá a público para anunciar, no dia 12, um “nada consta contra as urnas”, hipótese, então, em que seu chefe ficaria, literalmente, a falar sozinho. O general se converteu numa das vozes do governo a espalhar obscurantismo sobre o sistema eleitoral. Assim, ainda que “nada conste”, como é fato, não será ele a tirar de Bolsonaro o pretexto para questionar o resultado da eleição caso este lhe seja adverso.

Infelizmente, o Ministério da Defesa não está nessa empreitada como garantia suplementar de segurança, mas para fazer a vontade de um candidato a déspota bem pouco esclarecido. Não se dedica, em suma, à inspeção, como prevê a lei, mas ao proselitismo político, como veta a lei.

Tem-se, pois, que a mobilização para proteger o próprio pleito —que está sob ameaça— e o cumprimento da vontade do eleitor, qualquer que seja o veredito, nunca foi tão necessária. Bolsonaro vive um momento especialmente alucinado, contaminando outros à sua volta com seus delírios, porque vê amplos setores do empresariado a defender a ordem legal.

Dada a sua compreensão arruaceira da política, esperava que o capital o escolhesse como um chefe de milícia contra o “perigo comunista”, fantasma que, embaixo de sua cama, divide o espaço com o urinol e com a garrucha. Sente-se traído. Uma mesma carta com as respectivas assinaturas de Fiesp, Febraban, CUT e UNE, por exemplo, evidencia a sandice de sua militância em favor da luta armada. É o primeiro político, note-se, a usar a Presidência da República para a subversão.

Caminhando para o encerramento, noto que defendi aqui e em toda parte, desde sempre, a mobilização, especialmente a do empresariado, em favor da legalidade, a menos que à categoria parecesse irrelevante haver ou não no país um regime de liberdades. Assim, sou signatário inicial da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado de Direito”. Como valores absolutos, nunca sou neutro entre a corda e o pescoço. Estou sempre com o pescoço. E assinarei quantas cartas houver, oriundas de entes com legitimidade para redigi-las, na proteção à ordem democrática, que é um bem coletivo.

Entendo ser tal comportamento um mandamento ético da isenção jornalística. Quando menos porque uma ditadura me impediria de ser isento, não é mesmo? O preço da liberdade? É a eterna vigilância.

*Com Folha

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