Bitcoins e criptomoedas descentralizadas são o terraplanismo na economia – entenda

Bitcoins e criptomoedas descentralizadas são o terraplanismo na economia – entenda

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Um dos temas mais falados nos últimos anos tem sido o “milagre” do Bitcoins e das criptomoedas descentralizadas, um dos temas de maior “mistificação” já vistos sobre a economia e que repercutiu e repercute no mesmo ritmo das facilidades e fluidez das informações na era digital. E quando usamos a terminologia “mistificação” não estamos apenas apelando para uma figura de linguagem qualquer, ou seja, um recurso retórico para firmar uma posição política. Estamos nos referindo a um fenômeno religioso novo de fato e de direito. As criptomoedas chegaram para suprir uma demanda social e cultural e, portanto, subjetiva no campo da Economia, uma demanda cada vez mais comum na era do acirramento da Crise Estrutural do Capital, ou seja, o apelo à crença de que um milagre divino se estabeleceu no seio da sociedade capitalista tomada pelas benesses do desenvolvimento técnico e científico.

Para fazermos uma pequena contextualização histórica que nos dê condições de situar melhor o nascimento da religião das criptomoedas e da nova Teologia da Prosperidade high tech no campo econômico, devemos considerar o cenário de fundo: a economia capitalista tradicional encontra-se numa descendente contínua desde metade da década de 1970. De lá para cá, as coisas foram de mal a pior. É o que os especialistas em Economia Política denominaram de “A Crise Histórica do Capital”. Esta é uma informação que pareceria (e parece) estranha e exótica aos olhos de qualquer jovem da atualidade. Afinal, vemos um Mundo tão high tech, com tantas facilidades e progressos técnico-científicos tão chamativos que quando comparamos a atualidade com o século passado parece estarmos comparando o homem moderno ao homem pré-histórico. Como é possível que o sistema econômico de conjunto esteja em declínio e ruim sendo que há tantas coisas maravilhosas como um iPhone última geração ou um foguete Falcon 9 da SpaceX? Pois é, esta é uma longa história e um longo debate teórico do qual iremos poupar os detalhes. Simplificando ao máximo: o progresso técnico-científico que é real e louvável não possui paridade direta com o funcionamento de uma economia equilibrada e saudável, naquilo que se refere à qualidade geral da vida das pessoas. Um defensor do Neoliberalismo pode alegar que esta seria uma antífrase porque “um grande número de pessoas possui acesso às telecomunicações”. Na atualidade, por exemplo, existem mais aparelhos móveis no Brasil do que habitantes. Todos possuem acesso à telefonia móvel. Ora, mas esta informação não soaria tão estranha se não tivéssemos escalado tanto nos índices de roubos de aparelhos de celular, nos índices de desemprego e miséria no Brasil. Como podemos alegar que o acesso à informação significa necessariamente realizar-se num sistema econômico como o atual? Todos os indicadores sociais e econômicos demonstram o encarecimento de vida nas grandes metrópoles, o aumento da violência, abusos de substâncias tóxicas e no Brasil de 2016 para cá a volta da fome. Isso sem contarmos os fenômenos políticos que nascem nos cenários de medo e incerteza como a intolerância de todos os tipos e o negacionismo da Política e da Ciência. Há algo nesta conta que não fecha e tem total relação com uma economia global em franco declínio seja no Brasil, seja nos EUA, Europa ou em qualquer outro lugar em diferentes níveis de intensidade.

Em meio a um sistema já “capenga” de longa data, onde existe contínua concentração de riqueza na mesma proporção em que existe a facilidade de acesso às informações (não entrarei aqui na questão da qualidade das informações acessadas) e eis que alguns graves tombos de proporções faraônicas se abateram sobre a economia global. Em princípios da década de 2000, o estouro da “bolha da internet” colocava em xeque a ideia de que as tecnologias da informação geravam caixa, ou seja, uma boa parte destas “start ups” de tecnologia que eram precificadas na Nasdaq por alguns bilhões de dólares passaram a não valer um único centavo no dia em que se percebeu que as empresas “ponto com” não passavam de uma especulação financeira. Não demorou para que esta bolha estourasse quando os investidores perceberam que estavam investindo em empresas que não valiam absolutamente nada. Podemos dizer que este “incidente” é uma preparação do que seria o “boom” das criptomoedas algumas décadas depois. Economistas como Warren Buffet, atualmente um dos maiores críticos das criptomoedas foi altamente criticado antes do estouro da bolha da internet por não fazer investimentos nas empresas “ponto com” e chamado de “ultrapassado”. Eis que o estouro da bolha da internet e a ruína econômica de diversos investidores parece não ter sido o suficiente para que uma lição sobre economia fosse aprendida pelos detratores de Buffet.

Em 2008 foi a vez da grande crise dos subprimes, esta relacionada à bolha imobiliária dos EUA que repercutiu Mundo afora. Desta vez, diferentemente da bolha da Internet não havia dúvida se os imóveis eram ou não grandes ativos econômicos mas o quanto o poder de compra da classe média americana havia declinado se comparado a décadas anteriores. Antes da Crise do Petróleo de 1973, o poder de compra de uma família americana era muito superior proporcionalmente ao de uma família americana de 1990 em diante, o que indica níveis alarmantes de inadimplência e o abuso do crédito bancário sem a menor conexão com a realidade econômica do atual estágio do sistema Capitalista. A taxa média de lucros dos EUA só tem decaído nas últimas décadas e isso se reflete em uma economia cada vez mais especulativa e fictícia que pode desabar a qualquer momento. E se isso ocorre nos EUA significa que fora dele as coisas são multiplicadas por dez ou vinte vezes, salvo raras exceções. Não é de se surpreender que é neste mesmo ano de 2008 que o Bitcoin foi criado por uma figura tão lendária quanto incógnita e misteriosa, tão misteriosa que sua identidade é um mistério até os dias atuais, o famigerado “Satoshi Nakamoto”.

De fato o Bitcoin revela uma tecnologia algorítmica e operacional muito interessante. Mas o que o Blockchain tem de genial e extraordinário na sua capacidade de criar um sistema de criptografia seguro, não possui na mesma proporção a capacidade de salvar o sistema da sua total e completa falência. Esta informação é importante porque uma das frases mais repetidas nos últimos tempos é a de que as criptomoedas descentralizadas seriam algo como o “futuro” da economia de mercado. Este seria um mero engano conceitual caso não fosse um mantra religioso. Os propagadores do Bitcoin não estão necessariamente interessados em adentrar num debate científico mas sim ritualístico, uma tentativa de fazer uma narrativa ganhar a confiança e aceitação geral na marra. Mas não é com fé que o sistema econômico será salvo. Um sistema econômico é salvo com base em ações reais num mundo analógico e não digital.  O pomo da discórdia está no fato de que, para os seus defensores, as criptomoedas decentralizadas como o Bitcoin não estão sujeitas à regulamentação de um órgão como um Banco Central estatal. Alegam com isso um caráter anárquico e libertário de um ativo que aliás não possui o menor valor de absolutamente nada. Quanto à isso os próprios “anarco-capitalistas” concordam, o Bitcoin não tem lastro e não precisa dele. Para seus defensores, o Bitcoin se valoriza porque as pessoas acreditam nele e o negociam cada vez mais, gerando valor encima de valor.

Esta característica levaria o Bitcoin, de acordo com seus defensores a ser uma unidade de conta, meio de troca e uma reserva de valor. Estas primeiras determinações da moeda têm sido, nos últimos tempos, abandonada porque em quase nenhum lugar do Mundo se vê coisas sendo trocadas por Bitcoins, esta prática tem se mostrado cada vez mais secundária senão nula, o que já é um fato revelador por si só uma vez que estamos nos referindo a uma moeda digital que se apresentou inicialmente como uma unidade de conta inovadora. Mas esta não é a característica louvada por seus defensores e sim o fato de ser uma “excelente modalidade” de reserva de valor. De fato, os Bitcoins podem gerar grande liquidez se convertidos em moedas nacionais e, somente isso. Não é um ativo que se desprendeu das leis tradicionais das moedas estatais. Reitero, o Bitcoin e outras criptomoedas descentralizadas não são usadas em larga escala como unidades de troca. Só é possível aproveitar a riqueza de um Bitcoin se este for convertido em moeda nacional, ponto. Além do mais, toda essa crença ideológica em torno do Bitcoin, no frigir dos ovos, é uma esperança em converter os dividendos em moeda nacional. Se assim for, o Bitcoin não é um elemento exógeno à economia como a conhecemos hoje. Onde está o “pulo do gato” no Bitcoin? Só a tecnologia do Blockchain justifica tanto otimismo? De forma alguma. Uma moeda forte que consiga ser unidade de conta, meio de troca e reserva de valor sólida é aquela que não só passa a circular como meio de troca amplamente reconhecido como também é regulada por um Banco Central através das políticas econômicas e monetárias. É a política econômica que estabiliza uma moeda por meio dos vários dispositivos legais que valorizam ou desvalorizam o ativo simplesmente porque o Estado é aquele que emite a moeda.

Mas alguém ainda assim pode alegar que os Bitcoins podem, em algum momento futuro, serem unidades de troca amplamente aceitas nos estabelecimentos comerciais desprendendo-se, portanto, da sua dependência das moedas nacionais. Em realidade, qualquer coisa numa economia pode ser um meio de troca, inclusive os Bitcoins. Os defensores dos Bitcoins alegam até mesmo que países “muito ousados” já pensam nesse futuro e citam o exemplo de El Salvador, certamente a “nação pioneira” por ter sido o primeiro país do Mundo a adotar o Bitcoin como sua moeda padrão. Em primeiro lugar, em El Salvador – um país com economia bastante atrasada – já possui uma economia dolarizada e se quer possui controle sobre sua política monetária, não possui um Banco Central capaz de controlar a emissão da moeda e adotar estratégias de valorização ou desvalorização desta, atribuições importantes de um Banco Central na administração de qualquer ativo minimamente decente. Os Bitcoins entram na realidade de El Salvador tão somente como uma espécie de “Pix” que os habitantes locais utilizam, assim como nós aqui no Brasil usamos o nosso Pix em reais. Em El Salvador os valores são convertidos em dólares, pura e simplesmente. Não há absolutamente nada de inovador nisso.

Há também o caráter curioso de que estes países dolarizados dispostos a adotar o Bitcoin em grande medida se apresentam como fortes candidatos a paraísos fiscais. Ou seja, a economia destes países é tão fraca e tão pouco dinâmica que transformar o país num paraíso fiscal para atrair investimentos é uma política de governo que em nada expressa um caminho de que os Bitcoins serão a moeda dominante que encorajaria outros países seguirem esta rota. Muitos países simplesmente acreditam que boas políticas de governo e desenvolvimento vão muito além de se oferecerem como paraísos fiscais. No caso de El Salvador, esta foi a única alternativa restante diante da pobreza e subdesenvolvimento que um país atrasado da América Central foi capaz de desenvolver para além dos investimentos em turismo e agropecuária, por exemplo. A realidade nua e crua é que em El Salvador a economia é dolarizada e o país tem uma economia altamente atrasada, nada além disso.

Então, se o Bitcoin não é uma unidade de conta, meio de troca e tampouco reserva de valor (para quem não gosta de passar grandes emoções), então o que é o Bitcoin? Das três determinações de uma moeda, podemos dizer que a única aceitável seria a de reserva de valor porém com altíssima dose de especulação. Entretanto para bons analistas, nem ao menos isso podemos classificar o Bitcoin se quisermos falar de uma economia fincada na realidade e despojada de crenças religiosas. Esta criptomoeda e tantas outras que surgiram no decorrer dos últimos anos são, no limite, uma grande pirâmide financeira, numa escala nunca antes vista. É possível lucrar com os Bitcoins e outras criptos? Diria até que é, porém, assim como numa pirâmide de esquema Ponzi tradicional, esse privilégio dos lucros está restrito a círculos diminutos dos acionistas que chegaram primeiro. A base da pirâmide tende a perder tudo primeiro, exatamente como num clássico esquema Ponzi. Ainda assim alguém poderia alegar que sendo um esquema Ponzi ou não, pelo fato desta não ter vínculos com nenhum governo está livre de legislações penais nacionais então é uma pirâmide “legal” e quem quer se juntar, têm o direito mesmo sabendo que pode perder tudo neste cassino. Ora, é necessário salientar que mesmo um esquema de pirâmide não é eterno e muito menos democrático. Um esquema de Ponzi não é preocupante só porque ele é ilegal se praticado na maioria dos países. Como todo bom esquema de pirâmide, no melhor estilo do sistema capitalista é que este se trata de um modelo concentrador. Mesmo aqueles que lucraram no esquema, mais dia, menos dia perderão suas fortunas. Aqui devemos lembrar que estamos diante da mesma discussão se o Capitalismo possui ciclos de expansão e retração infinitos ou se a cada ciclo de expansão e retração a riqueza passa a ficar concentrada em níveis cada vez mais agudos. Como o “Capitalismo infinito” também é uma religião daqueles que não aceitam a realidade, concluímos que o Capitalismo atingirá níveis terminais exatamente como o tema das criptomoedas atingirá.

Mas o que podemos compreender deste fenômeno contemporâneo? As criptomoedas descentralizadas, estas “libertárias” e “despojadas” de autoridade estatal são uma degeneração da economia regular que já é uma economia em profunda crise. Se a economia “normal” já sofria de um mal cancerígeno e de um descolamento da realidade com a especulação financeira antes da criação dos Bitcoins, com os Bitcoins e as criptomoedas descentralizadas o status de decadência foi atualizado e turbinado. O que devemos observar é que em realidade estas práticas contribuem para o aprofundamento da crise econômica do sistema Capitalista, que ao final acaba sendo uma crise civilizacional também. Não é à toa, por exemplo, que os grandes defensores de criptomoedas se tornam fanáticos defensores religiosos dessa economia fictícia apelando para mantras ou frases de efeito mistificadoras. Eles transformam a economia numa religião e com isso se descolam totalmente da racionalidade, é o nosso “querido” terraplanismo na sua esfera mais estrutural possível que é a economia contemporânea.

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