Jamil Chade – Num ato poucas vezes visto em relação ao Brasil, a ONU cobra independência das instituições nacionais em um ano de eleição, faz um apelo por um processo “democrático”, “sem interferência” e alerta para a violência contra mulheres, negros e representantes do movimento LGBTI+ que concorram ao pleito, em outubro.
O alerta é da Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, que incluiu o Brasil em seu informe sobre situações que preocupam a entidade e que está sendo apresentado nesta segunda-feira diante do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra.
Duas horas depois de fazer seu discurso, em uma coletiva de imprensa, Bachelet aumentou o tom da cobrança ao ser questionada sobre o Brasil. “Em outubro vocês têm eleições. E peço a todas as partes do mundo que as eleições sejam justas, transparentes e que as pessoas possam participar livremente”, disse. “Será um momento democrático muito importante e não deve haver interferência de nenhuma parte para que o processo democrático possa ser atingido”, insistiu.
Bachelet, ex-presidente do Chile e que se chocou com o presidente Jair Bolsonaro desde 2019, escolheu fazer o alerta sobre as eleições em seu último discurso diante do órgão internacional. Ela anunciou na mesma reunião que não continuará no cargo máximo de direitos humanos da ONU, depois de quatro anos no posto. Ela teria o direito a um segundo mandato, mas tem sido alvo de duras pressões por conta da crise na China. Bachelet, porém, insiste que já tomou essa decisão há dois meses e que chegou a comunicar sua opção ao secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, em abril.
Atritos com Bolsonaro
Em relação à situação brasileira, ela não poupou críticas sobre diversos aspectos durante seu discurso. “No Brasil, estou alarmado com as ameaças contra os defensores dos direitos humanos ambientais e os povos indígenas, incluindo a exposição à contaminação por mineração ilegal de ouro”, declarou a chilena.
Ela também criticou a situação do racismo e da violência policial, um tema que já abriu uma crise entre o governo de Jair Bolsonaro e a entidade internacional. O presidente, há três anos, rebateu a chilena fazendo um elogio ao ditador Augusto Pinochet. O pai de Bachelet havia sido assassinado quando o general tomou o poder e a própria representante da ONU foi torturada.
Ela, porém, manteve suas críticas em relação à situação de direitos humanos no Brasil e, agora, alerta para a situação eleitoral. “Os casos recentes de violência policial e racismo estrutural são preocupantes, assim como os ataques contra legisladores e candidatos, particularmente os de origem africana, mulheres e pessoas LGBTI+, antes das eleições gerais de outubro”, disse.
Bachelet, num raro gesto, também fez uma cobrança sobre as instituições, ainda que não tenha citado textualmente o nome de Jair Bolsonaro e seus ataques contra o Judiciário e as instâncias responsáveis pelas eleições. “Apelo às autoridades para que garantam o respeito aos direitos fundamentais e instituições independentes”, completou Bachelet.
Na semana passada, Bolsonaro sinalizou ao presidente americano Joe Biden que respeitaria o processo democrático. Mas, um dia depois, voltou a criticar o Supremo Tribunal Federal e retomou sua retórica de ataques.
As críticas da ONU ainda surgem poucos dias depois de a ONU acusar o governo brasileiro de ter agido de forma “extremamente lenta” ao lidar com o desaparecimento do indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips. Tanto a entidade como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos cobraram o Brasil a “redobrar” os esforços nas buscas.
Brasil incluído em locais com “situações críticas” no mundo
Ao citar o Brasil, Bachelet ainda incluiu o país numa lista de cerca de 30 locais pelo mundo considerados como preocupantes em relação às violações de direitos humanos. Ao longo dos últimos três anos, o governo de Jair Bolsonaro foi criticado em diversas ocasiões por parte de organismos internacionais, ampliando a pressão sobre a diplomacia brasileira.
O Brasil foi citado entre locais que, segundo Bachelet, vivem “situações críticas e que exigem ações urgentes”.
No caso específico do Brasil, ela mencionou o país ao falar de “tendência perturbadora de redução do espaço cívico, incluindo ataques a defensores dos direitos humanos e jornalistas, e restrições indevidas à liberdade de expressão e da mídia”.
A lista de países mencionados ainda inclui a Rússia, Estados Unidos, Turquia, Haiti, México, Guatemala, Mali, China e vários outros. Bachelet deixou claro que relatórios separados ainda serão apresentados como Síria, Venezuela, Iêmen e outros.
Se a ONU não tem o poder de impor sanções ou adotar medidas efetivas contra o país, o constrangimento internacional tem levado a um questionamento por parte de governos estrangeiros, ativistas e mesmo fundos de investimentos.
*Com Uol