Levantamento revela abismo na distribuição de recursos e aponta que governo Bolsonaro ignora critérios objetivos para privilegiar interesses políticos de aliado.
Às margens do Rio São Francisco, a cidade de Petrolina, em Pernambuco, é a sexta mais rica do estado, conhecida pela sua produção de frutas e a alcunha de Califórnia Sertaneja. Nos últimos anos, o município ganhou outro título: o de maior beneficiado por recursos do orçamento secreto, as emendas do relator, com R$ 166,4 milhões entre 2020 e 2021.
No extremo oposto, Iguaracy e Solidão, no mesmo estado, figuram entre os municípios mais pobres e, ao mesmo tempo, foram esquecidos pelos congressistas na distribuição do dinheiro público. Iguaracy recebeu R$ 100 mil. Solidão, nada. O que diferencia as cidades pernambucanas é o sobrenome de quem as comanda: nos últimos 70 anos, Petrolina já teve um Coelho na prefeitura nove vezes, incluindo Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do governo no Senado até o fim do ano passado.
Dados levantados pelo Globo, a partir do Portal da Transparência, sobre valores empenhados pelo governo federal mostram que há um abismo na distribuição de recursos do orçamento secreto: metade dos repasses a prefeituras foi concentrada em 7,7% das 5.570 cidades do país, o equivalente a 422 municípios. Na prática, os números revelam que ao delegar a deputados e senadores a decisão de como e onde o dinheiro público deve ser empregado, o governo ignora critérios objetivos — como a necessidade de investimento em serviços básicos à população — para privilegiar interesses políticos de aliados do Palácio do Planalto.
A concentração se dá principalmente em redutos eleitorais de parlamentares com postos estratégicos no Congresso, que ganharam o controle de uma robusta fatia do Orçamento federal por meio das emendas de relator, base do orçamento secreto, em troca de apoio ao governo de Jair Bolsonaro. Dos R$ 36 bilhões reservados ao esquema entre 2020 e 2021, R$ 20,7 bilhões foram destinados a prefeituras, mas nem todas tiveram um político com acesso à chave do cofre em Brasília e, por isso, ficaram à míngua.
Em Pernambuco, por exemplo, diferentemente de Petrolina, que era governada até março por Miguel Coelho (União Brasil), filho do ex-líder do governo no Senado, Iguaracy tem como prefeito José Torres, do PSB, partido que faz oposição a Bolsonaro.
— É difícil conseguir verba aqui. Não consegui nada ainda. Nós vemos muitas cidades da base do governo com mais condições. Mas sempre vai ser assim. Tem umas que têm demais e outras de menos — diz Torres
O prefeito conta que desde o ano passado pede ao Executivo federal dinheiro para construir duas escolas e recapear estradas. Sem sucesso.
Situação semelhante ocorre em Solidão, no sertão pernambucano. Enquanto Petrolina recebeu R$ 32,5 milhões do orçamento secreto para reformar um centro de convenções, o prefeito da cidade, Djalma de Souza (PSB), lamenta por não conseguir verba para uma escola:
— Infelizmente, a gente não tem a felicidade de receber dinheiro dessas emendas. Se eu tivesse deputados aliados do governo, com certeza eu teria uma escola na mão.
*Com O Globo