Especialistas apontam que Forças Armadas “driblaram” Lei de Acesso e sugerem uma Comissão da Verdade “permanente”.
A divulgação de áudios de sessões do Superior Tribunal Militar (STM), obtidos em 2017 pelo advogado Fernando Augusto Fernandes e pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta que as Forças Armadas podem ter uma “caixa-preta” de documentos ainda inéditos sobre tortura e outros crimes da ditadura militar, o que justificaria uma Comissão da Verdade “permanente”.
Trechos das 10 mil horas de gravações foram publicados, no último domingo (10), pela jornalista Miriam Leitão, de O Globo, ela própria vítima de tortura. Desde então, historiadores, cientistas políticos e especialistas em transparência pública começaram a apontar a possibilidade da existência de outros materiais ainda não revelados sobre o período ditatorial.
A tese de pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato é que a Lei de Acesso à Informação (LAI) e a Comissão Nacional da Verdade (CNV), aprovadas pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em novembro de 2011, tiveram papel relevante na revelação de documentos da ditadura, mas não foram capazes de desobstruir todo o material em posse dos militares sobre a época.
“Há documentos e fontes que não vieram a público”
O professor de Ciência Polícia Rodrigo Lentz, pesquisador do Observatório da Defesa e Soberania Nacional do Instituto Tricontinental, disse que “ainda há documentos e fontes que não vieram a público, muito por conta do comportamento da instituição militar”. Autor do livro República de Segurança Nacional, ele afirma que as Forças Armadas apostam na “obstrução do acesso à memória”.
“Mesmo com todo o trabalho feito na Comissão da Verdade, ainda há documentos e fontes que não vieram a público, muito por conta do comportamento da instituição militar, da nossa organização militar, de obstrução do acesso a essa memória que se defende institucionalmente como legado”, afirmou, em entrevista ao Brasil de Fato.
“[A revelação] confirma que precisamos desobstruir essa estrada de informação que é a organização militar. Para isso, é preciso fazer um grande debate sobre o papel das Forças Armadas no país. Se não discutirmos qual o papel das Forças Armadas hoje, não conseguiremos voltar ao passado. Esse é um problema, mas o primeiro passo é enxergar o problema”, disse Lentz.
LAI muda cultura, mas Forças Armadas resistem
A Lei de Acesso à Informação, criada em 2011 para aumentar a transparência do poder público, foi fundamental para que o STF e o próprio STM cumprissem a decisão que liberou os áudios da Corte militar. O processo judicial que liberou o conteúdo começou em 2006, mas apenas em 2017, à luz da LAI, a ministra Carmen Lúcia e o tribunal militar concederam ao advogado Fernando Augusto Fernandes o acesso ao material.
O advogado Bruno Morasutti, da Agência Fiquem Sabendo e integrante do Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, falou ao Brasil de Fato sobre a importância da LAI em promover uma mudança de cultura no poder público. Ele aponta, no entanto, que houve “resistência” do STM no cumprimento da decisão, o que motivou a judicialização do caso.
“Esse caso é interessante porque, de início, mostra o impacto que a LAI teve na administração pública em geral e no Judiciário, em especial, no que diz respeito a uma mudança de cultura. Porque, a rigor, do ponto de vista jurídico, desde a Constituição de 1988 nós já temos direito de acesso a esses documentos. Já havia, em nível federal, normas como a própria Lei de Arquivos Públicos e a lei federal 8.159/91, que asseguravam o acesso a esse tipo de informação”, explicou.
“A LAI, em 2011, trouxe uma mudança cultural muito importante. Se passou a discutir isso [transparência pública] de uma forma muito mais ampla, com a importância de se permitir instrumentalizar o direito do cidadão de acessar documentos que estejam sob a guarda da administração pública”, afirmou o especialista em transparência pública. Morasutti aponta, no entanto, que o caso mostrou “uma certa resistência do STM a fornecer informação”.
Comissão da Verdade “permanente”
Lentz aponta ainda que a divulgação dos áudios remete a uma das recomendações do relatório final da CNV. Segundo ele, a possibilidade de existência de documentos que não foram tornados públicos denota a necessidade de que um órgão seja criado para trabalhar na memória da ditadura de forma permanente.
“Em uma das suas recomendações, a CNV propõe a instalação de um órgão de continuidade do seu trabalho, algo que nunca foi feito. Essa é uma demanda que está em aberto. É uma recomendação feita a todos os países que passaram por coisas parecidas com as do Brasil. Inclusive, já deveria ter sido implementada [e os áudios] podem reforçar a necessidade disso”, disse.
Documentos foram destruídos?
Em 2011, com a Comissão da Verdade, um conjunto de relatórios, guardados em sigilo por mais de três décadas, detalhou a destruição de aproximadamente 19,4 mil documentos secretos produzidos ao longo da ditadura pelo extinto Serviço Nacional de Informações (SNI).
Segundo informações do jornal Folha de S. Paulo, as ordens de destruição partiram do comando do SNI e foram cumpridas no segundo semestre de 1981, no governo João Baptista Figueiredo. Entre os documentos, estavam relatórios sobre personalidades, como Leonel Brizola, o arcebispo Helder Câmara e os poetas Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto.
Tortura no Brasil não é novidade
A essência dos conteúdos do áudio não é novidade. A extensão da repressão política no Brasil começou a ser sistematizada clandestinamente ainda durante a ditadura no projeto Brasil: Nunca Mais, desenvolvido por Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel, o pastor presbiteriano Jaime Wright e outros nomes da sociedade civil. O grupo sistematizou mais de 700 processos do STM, cobrindo o período entre 1961 e 1979, e publicou o primeiro volume da coletânea em 1985, criando um marco no mapeamento da repressão.
Esse grupo lutou contra a lógica do esquecimento proposta pela Lei de Anistia, de agosto de 1979. A normativa, que indicava o abrandamento da repressão, beneficiou presos e exilados políticos brasileiros, que começariam a retornar o país. Mas, por outro lado, pavimentou o caminho para a impunidade dos agentes de segurança.
Essa lógica de “apagamento do passado”, conforme define Lentz, ainda é bastante recorrente entre os defensores do regime militar, que até hoje o celebram sob o epíteto de “revolução” todo dia 31 de março. Um dos maiores expoentes desse grupo, além da família Bolsonaro, é o vice-presidente Hamilton Mourão, que, na última segunda-feira (18), respondeu de maneira irônica ao ser questionado sobre os áudios: “Vai trazer os caras do túmulo de volta?”, disse, ao argumentar que “houve excessos de ambas as partes” e concluir com “isso já passou, é história”.
Mais recentemente, a Comissão Nacional da Verdade, que durou de 2011 a 2014, responsabilizou mais de 300 pessoas por torturas e outras violações aos direitos humanos, mas não conseguiu alterar o entendimento das Forças Armadas sobre o seu papel durante e depois dos Anos de Chumbo.
“Essa era uma prática que existia antes de 1964. A tecnologia da tortura era do Estado brasileiro como um recurso de segurança pública que foi ‘exportado’, entre aspas, para presos políticos. Esses áudios podem alimentar um mito que foi construído de que depois da ditadura a tortura terminou, o que não é verdadeiro”, afirma Lentz. “A sociedade ainda está pagando a conta de não ter resolvido o seu passado, é preciso refundar a nossa interpretação da história”, finalizou o pesquisador.
Câmara e Senado se manifestam
O Congresso Nacional tem reverberado o impacto das revelações. Nesta terça-feira (19), o Psol pediu que o Supremo Tribunal Federal (STF) revise a Lei de Anistia e acabe com o que chama de “descaso” por parte do Estado.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado, Humberto Costa (PT-PE), também anunciou que tomaria providências. Em vídeo enviado ao Brasil de Fato, o petista citou a necessidade de convocação do pesquisador Carlos Fico, que se dedicou à análise dos áudios nos últimos anos.
“Estou requerendo que a Comissão de Direitos Humanos tenha acesso a esses áudios, que nós possamos fazer uma análise do seu conteúdo e ao mesmo tempo convidar o professor Carlos Fico, que tem feito essa análise já há alguns anos, para que possa participar de uma audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e falar um pouco dessa experiência”, afirmou.
*Com Brasil de Fato