A semana que passou foi muito ruim para a terceira via, especialmente no último dia da janela partidária, período turbulento de trinta dias em que parlamentares tem liberdade para mudar de legenda sem perder o mandato.
Como já era previsto, os parlamentares procuraram um porto seguro: migraram para legendas com mais perspectiva de poder, a nível nacional ou local.
O gráfico final da migração dos deputados federais, com as colunas de antes e depois, não deixa dúvida. O PL, novo partido de Bolsonaro, foi o grande vencedor da janela, tornando-se o maior partido na Câmara dos Deputados, com 73 parlamentares, um aumento de 30 deputados em relação ao que tinha antes.
O PT experimentou crescimento modesto, de 3 deputados, e firmou-se como segunda maior legenda da Câmara. Mas ampliou a vantagem relativa sobre outros partidos de oposição.
Antes da janela, o PT tinha 53 deputados, 23 a mais que o PSB e 27 a mais que o PDT.
Hoje, com 56 deputados, o PT tem 34 a mais que o PSB e 36 a mais que o PDT.
Esse fato tem mais relevância do que parece a primeira vista, porque o debate sobre a terceira via esconde, em verdade, uma questão ideológica central paa a conjuntura política brasileira.
A questão é a seguinte: existem duas terceiras vias, uma à esquerda, representada por Ciro Gomes, e outra à direita, representada por Sergio Moro, Dória e Leite.
Nessa clivagem ideológica profunda está a raiz das dificuldades vividas por seus nomes. Eleitores de Ciro não votam em Moro, e eleitores de Moro não votam em Ciro. Com isso, os supostos 30% de eleitores “nem-nem”, ou seja, que não votam em Bolsonaro ou Lula, acabam se fragmentando em três grupos estanques, que não se comunicam entre si: um teto de 10% poderia votar num candidato a esquerda, outros 10%, num nome à direita, e 10% é o percentual constante de nulos, brancos e absenteistas.
Além disso, está claro que a terceira via é hoje uma preocupação eminentemente de setores da classe média, em particular a classe média paulista.
A última pesquisa Quaest no estado de São Paulo mostra que, entre eleitores com renda familiar acima de 5 salários, Moro tem 11%, Ciro 5%, Dória 3%, Leite 2% e Tebet 1%. Ou seja, esses cinco somados tem 22% dos eleitores paulistas de classe média, quase empatados com os 25% de Bolsonaro, embora ainda distantes dos 34% de Lula, no mesmo segmento.
Segundo a nossa divisão ideológica, a terceira via da direita (Moro, Doria, Leite e Tebet) tem 17% dos votos da classe média paulista, número muito superior aos 5% do único representante da terceira via canhota, que é Ciro.
A terceira via, portanto, é um movimento paulista, de classe média, e liberal-conservadora. Essa é a terceira via que incomoda Bolsonaro, porque ela tem capacidade de roubar eleitores do presidente. Sua maior dificuldade, e ao que parece uma dificuldade insuperável, é penetrar nas camadas populares.
O vai-e-vem de João Dória, desistindo de sua candidatura e, em seguida, desistindo da desistência, certamente ampliou ainda mais a sua rejeição junto ao eleitorado, que já é incrivelmente elevada. Ninguém gosta de indecisos, ainda mais na política. Agora que não é mais governador, Dória não tem sequer a máquina em mãos, de maneira que a tendência é sumir do mapa.
Sergio Moro, por sua vez, viveu um momento tão ridículo no último dia da janela, com sua decisão intempestiva de migrar para o União Brasil, que é preciso aguardar os risos se amainarem para entender o que restou dele. Neste sábado, depois de ser humilhado publicamente por dirigentes de seu novo partido, ele andou se reunindo publicamente com nomes da terceira via, como Eduardo Leite e Simone Tebet, tentando sobreviver politicamente. Ele ainda é o candidato mais forte da terceira via, mas é hostilizado por setores muito fortes de seu partido.
A entrada de Moro no União Brasil, de qualquer forma, enterra as pretensões (que, a bem da verdade, nunca foram realistas) de uma aliança entre Ciro Gomes e esse partido.
A propósito de Ciro, ele é o representante da outra terceira via, a de cunho progressista. Mas sua campanha esbarra na incapacidade de articulação do candidato e de seu partido, além de erros estratégicos em série.
Ao abrir guerra contra o PT e Lula, Ciro Gomes se deixou levar por seu ressentimento pessoal e superestimou suas próprias forças
Quando se considera a disputa pela hegemonia na esquerda, a situação do PDT é melancólica.
O PT fechou federação com PCdoB e PV, e Lula deve receber apoio do PSB e do PSOL (que por sua vez se federou com a Rede).
Com isso, o PT lidera um campo político nucleado por seis partidos, que somam 101 deputados federais, contra apenas 20 deputados do solitário PDT, que não negocia federação com ninguém.
O PT de Lula emerge, portanto, como o vencedor incontestável na disputa pela hegemonia no campo progressista: construiu uma articulação muito mais ampla e mais bem colocada, tanto nas pesquisas nacionais (onde Lula lidera isolado) como nas estaduais (nas quais os candidatos da aliança tem ótima colocação).
Entretanto, números às vezes mais escondem do que mostram. O problema do PDT não é apenas numérico, mas sobretudo de qualidade. O partido não apenas perdeu parlamentares e apoiadores, mas sobretudo perdeu aqueles que tinham mais força nas redes. O PDT tinha apenas dois parlamentares com mais de 100 mil seguidores: Tulio Gadelha, de Pernambuco, e Tábata Amaral, de São Paulo. Gadelha migrou para a Rede e usa seus canais para apoiar Lula. Amaral mantém uma posição mais crítica, mais independente, em relação a Lula, mas já deu vários sinais de que apoiará o ex-presidente, possivelmente no primeiro turno. Em encontro recente com empresários paulistas, divulgou-se um diálogo da deputada com um grande empresário que a maioria dos petistas entendeu como uma crítica a Lula, quando, na verdade, era o oposto.
“Já que vamos ter o Lula, que seja com um vice como o Alckmin”, teria dito Tábata. Ora, essa argumentação está alinhada à estratégia do próprio Lula, que escolheu Alckmin exatamente para abrir uma fissura no empresariado paulista. Desse ângulo, Tábata foi mais lulista do que muito petista. Além disso, a frase de Tábata deve ser lida assim: “antes eu não tinha certeza se apoiaria Lula, porque tenho um base ainda reticente a isso, mas agora, com Alckmin, eu estou mais à vontade para apoiar”. Com seu jeitinho, Tábata ajudou a colher alguns votos para Lula junto a um eleitorado extremamente hostil à esquerda, e isso pode ser considerado um serviço e tanto ao ex-presidente!
E o que Ciro e PDT conquistaram durante a janela partidária?
O PDT conquistou ao menos quatro nomes que merecem alguns comentários: Aldo Rebelo, Robinson Farinazzo, Elvis Cezar e Cabo Daciolo.
Aldo Rebelo, reconhecido em muitos círculos como um nacionalista de grandes qualidades, apesar de impopular em setores influentes da esquerda, por causa de seu discurso anti-identitário, poderia ser considerado uma conquista importante para o PDT. Mas o preço de sua chegada foi alto: ele ingressou no partido para ser candidato ao Senado, e isso é mais uma prova do isolamento do PDT em São Paulo.
Rebelo poderia ser um bom senador, mas sua candidatura, inventada às pressas, não ajuda nem um pouco a ganhar votos para Ciro em São Paulo.
O candidato do PDT ao Palácio dos Bandeirantes, Elvis Cezar, é um tucano filiado na última hora ao partido. Não atrai votos nem à esquerda, nem à direita, e deverá ter um desempenho pífio, até mesmo porque é um homem de poucas qualidades retóricas, políticas ou morais.
Enquanto isso, Lula deverá ter um palanque formado com um quadro orgânico e experiente, ex-prefeito da capital, com um grande recall eleitoral oriundo de sua candidatura a presidente em 2018, além de líder nas pesquisas de intenção de voto para o governo do estado.
Cabo Daciolo entrou no PDT no último minuto da janela partidária, após se deparar com portas fechadas em suas pretensões para uma candidatura ao governo do Rio pelo PROS.
O caso Daciolo é sumamente curioso. O candidato ganhou fama nacional na campanha de 2018 justamente quando tentou constranger Ciro Gomes num debate em rede nacional, com acusações de que o pedetista integraria um grande movimento internacional comunista latino-americano, chamado Ursal. A reação de Ciro, contudo, foi tão bem humorada, e Cabo Daciolo se revelou um personagem tão cândido, que foi perdoado por todo mundo, e acabou virando queridinho de setores progressistas. Há algumas semanas, Cabo Daciolo disse ter recebido uma espécie de “ordem divina”, para apoiar a candidatura presidencial de Ciro Gomes. Desde então tem postado elogios a Ciro, à militância cirista, e a movimentos trabalhistas. Caiu nas graças da “turma boa”, apelido que a militância cirista recebeu do próprio candidato.
Ainda está em suspenso se Cabo Daciolo seria candidato ao senado ou à Câmara pelo PDT. É mais provável que seja candidato a deputado, porque uma candidatura ao Senado geraria dificuldades para a aliança que o PDT firmou com o PSD no estado do Rio. Se Rodrigo Neves quer ser o cabeça de chapa numa candidatura ao governo fluminense, deve ceder a vaga do Senado ao PSD. Para deputado, Cabo Daciolo pode ajudar o partido a puxar votos. Mas também pode atrapalhar os planos de outros candidatos do partido.
Daciolo pode ser uma pessoa simpática, mas é um fanático religioso, que atribui suas decisões a inspirações divinas. Setores do cirismo acham que sua presença no PDT poderia ajudar Ciro a conseguir votos junto aos evangélicos. Francamente, eu duvido. Cabo Daciolo representa uma caricatura exagerada do evangélico, cuja grande maioria não sai berrando “glória a Deus” a todo momento, tampouco chamando os outros de “varão” ou “varoa”. Neste sentido, a proximidade de Daciolo pode não apenas irritar o eleitorado evangélico moderado, que luta contra preconceitos derivados justamente de suas franjas radicalizadas, como pode espantar o eleitorado católico ou de outras religiões, assustados com o fanatismo performático desse novo “trabalhista”.
A entrada do “comandante Robinson Farinazzo” no PDT, por sua vez, é outro acontecimento original. Fui assistir a vídeos do militar, dono de um canal relativamente grande, chamado Arte da Guerra, e pesquisar sua vida nas redes sociais. Ele é um influencer bolsonarista, e vive no momento uma crise junto a seu público justamente por conta de sua filiação ao PDT. Farinazzo não anda em boas companhias. No dia 31 de março último, ou seja, após a filiação ao PDT, Farinazzo participou de uma live de lançamento de um novo livro de Christiane Brasil, deputada federal pelo PTB, filha de Roberto Jefferson. O livro justifica e louva a “revolução” de 1964.
Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, com o qual Farinazzo aparentemente partilha muitos valores e teorias conspiratórias, é figura sempre presente nas lives do Arte da Guerra.
Outra figura que Farinazzo andou entrevistando em seu canal é a médica Nise Yamaguchi, indiciada na CPI da Pandemia por sua pregação negacionista.
Sua entrada no PDT, portanto, cheira a oportunismo eleitoral barato, porque está claro que ele não guarda nenhuma identificação com os princípios democráticos do trabalhismo.
Entretanto, o que mais cria obstáculos a Ciro Gomes tem sido a maneira cada vez mais agressiva e truculenta com que ele conduz o debate político, contaminando a sua militância com o mesmo espírito.
Houve um tempo em que os políticos prometiam manter o “alvo nível” da campanha, e de vez em quando ainda se fala em estabelecer “pactos de não agressão”. O próprio Ciro, em determinado momento, falou em fazer uma “trégua”, dando a entender que estava disposto a reduzir os ataques ao PT. Ele mesmo a rompeu, e no mesmo dia.
Ciro perdeu a noção do que seja manter uma campanha de nível, centrada na divulgação de um projeto, e aderiu a um udenismo vulgar e violento em suas falas. Como sua atuação dificilmente foge à bolha progressista, o que ganha destaque e manchetes nunca são as críticas que faz a Bolsonaro, e sim seus ataques a Lula.
Por outro lado, como Lula tem feito, por sua vez, uma campanha preocupada em manter um espírito de alto astral, de esperança em dias melhores, para se distinguir do clima de fim de mundo que caracteriza o bolsonarismo, os ataques de Ciro acabam se voltando contra o próprio Ciro, porque o associam a sentimentos de desespero, aflição e derrota.
Por ironia das circunstâncias, a terceira via acabou se tornando, à sua revelia, um campo de batalha onde os mesmos Bolsonaro e Lula disputam o poder. No caso da terceira via conservadora, o que se joga ali é a criação de uma alternativa “limpinha” ao ultraliberalismo de Bolsonaro. A terceira via de esquerda, representada por Ciro, por sua vez, poderia ter a função estratégica de fazer as críticas ao petismo que o próprio PT tem dificuldades de fazer, além de fazer contribuições programáticas para todo o campo progressista. Quando Ciro tenta empurrar o PT e Lula, todavia, para o campo “inimigo”, ele cede à gravidade e ele mesmo acaba sendo empurrado para esse lugar. A questão programática, nesse contexto, acaba se tornando uma caricatura, porque evidentemente nenhum projeto político sério pode ser levado adiante sem uma articulação política costurada com inteligência e sutileza.
Um “projeto nacional de desenvolvimento” que não contenha, em seus fundamentos, uma chamada para a unidade política, o respeito às forças sociais vivas, reais, e, sobretudo, um código de ética e decoro na relação entre as lideranças populares progressistas, não é um projeto que deve ser levado em consideração. Não é viável porque está contaminado de sentimento antipolítica. É apenas uma cartilha acadêmica, um powerpoint de projetos superficiais, destinado ao lixo da história.