Nas últimas semanas temos acompanhado, com preocupação, a escalada da
tensão entre a Rússia e os Estados Unidos da América (EUA), Grã-Bretanha, França e
Alemanha, países que efetivamente comandam a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN). Após semanas de acusações mútuas, incontáveis reuniões diplomáticas,
encontros entre chefes de governo e Estado, além de uma incessante movimentação de
tropas, as forças armadas russas adentraram as fronteiras da Ucrânia no dia 24 fevereiro
de 2022.
Os meios de comunicação de massa – canais de televisão, rádios, jornais,
revistas, redes sociais e podcasts – foram rapidamente tomados por inúmeros(as)
especialistas, articulistas, comentadores e analistas, que passaram a construir um
discurso ou narrativa hegemônica sobre os fatos que antecederam ao conflito e os
acontecimentos que vêm se desenrolando após a ação da Rússia no território ucraniano.
No processo de construção deste discurso hegemônico, vivenciamos uma batalha
do bem contra o mal, na qual o bem é invariavelmente representado pelos países da
Otan, com os EUA, Grã-Bretanha, França e Alemanha a frente, e a Rússia encarnando
toda a maldade de que é capaz a humanidade. Entretanto, gostaria de chamar a atenção
para o fato de que nesta história não existem mocinhos nem bandidos. Não estamos
diante de um jogo de tabuleiro, um game ou um filme hollywoodiano, mas sim da vida
real, na qual as personagens são reais, com suas múltiplas contradições e interesses.
Nas palavras de um desses analistas, diante de uma bancada de atentas
repórteres, estamos diante do “primeiro conflito em território europeu desde o fim da II
Guerra Mundial”, que ocorreu em 1945. Talvez o autor desta afirmação tenha se
esquecido dos conflitos militares na região dos Balcãs, que resultaram na morte de mais
de 200 mil pessoas e mais de 2 milhões de refugiados. Além disso, passou despercebido
que no mesmo dia em as tropas russas adentravam as fronteiras da Ucrânia, a Síria, a
Somália e o Yemen foram bombardeados respectivamente pelas forças armadas de
Israel, EUA e Arábia Saudita. Todos os olhos e ouvidos estavam voltados para a
Europa.
Destaco que o presidente russo Vladimir Putin está muito longe de ser um
democrata. Controla com mão-de-ferro o aparelho estatal russo, reprimindo
violentamente qualquer manifestação contra o seu governo. Aprovou leis que
criminalizam a população LGBTQIA+ e que garantem aos maridos o direito de bater
nas esposas uma vez por ano. Além disso, ele ainda é acusado de prender e assassinar
seus oponentes. Mas para a maioria dos(as) analistas da mídia brasileira, o principal
problema de Putin foi ter pertencido aos quadros da KGB, a polícia secreta da antiga
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), esta informação, somente para
constar era repetida quase como um mantra nas diversas transmissões.
No esforço de retomar o clima da Guerra Fria ou da II Guerra Mundial, os(as)
analistas acabaram se esquecendo que a Rússia não é a URSS, Vladimir Putin não é
Stálin ou Hitler e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky está muito longe de ser
um democrata defensor da paz mundial e do entendimento entre os povos, basta lembrar
de que ele chegou ao poder após um golpe de estado em 2014 e com apoio de grupos
declaradamente neonazistas e fascistas. Isto se não quisermos lembrar do papel dos
Estados Unidos da América no Iraque, na Líbia e mais recentemente no Afeganistão.
Qualquer análise, minimamente séria, do conflito entre a Rússia e a Otan, tendo
a Ucrânia como pano de fundo, deve levar em consideração ao menos esses fatores:
ingresso de ex-repúblicas soviéticas na Otan; proximidade das eleições nos EUA, Grã-
Bretanha e França; dependência energética europeia; e o golpe de Estado de 2014 na
Ucrânia associado a crescente influência e poder de grupos neonazistas/fascistas.
Diferentemente da “em uma Guerra todos e todas perdem” eu acredito que apenas uma
parcela da população sofrerá verdadeiramente com a Guerra. Esta parcela é formada
pela classe trabalhadora. Enquanto as classes dominantes russas e ucranianas se
confraternizam com seus congêneres dos países capitalistas centrais, são os(as) jovens
trabalhadores(as) que lutam no front de batalha, vêm seus sonhos sendo destruídos
juntamente com suas casas e familiares. Enquanto as elites se esbaldam em banquetes
para celebrar a vitória, o entendimento e para repartir os espólios, são os trabalhadores e
trabalhadoras que sofrem com a fome e a morte, tanto neste como em qualquer outro
conflito.
Thiago Esteves é Doutor em Educação, Mestre em Ciências Sociais, Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais.