Presidente terminar seu mandato no cargo é prova de desastre.
Celso Rocha de Barros – Carlos Pereira é um grande cientista político brasileiro. Escreveu com Marcus Melo (o da coluna aqui do lado) um livraço, “Making Brazil Work”. Reunindo pesquisas empíricas de alta qualidade, a obra mostrou que o sistema político brasileiro funcionava bem melhor do que se pensava.
O problema é que o livro saiu quando já parava de funcionar. “Making Brazil Work” continua sendo um ótimo estudo dos 20 anos anteriores. Suas conclusões podem voltar a ser aplicáveis quando a crise política passar. Mas é evidente que seu modelo teórico subjacente perdeu poder explicativo na crise política dos últimos anos.
Após a eleição de Bolsonaro, Pereira passou a defender a tese de que Bolsonaro não oferecia risco à democracia brasileira. Afinal, Brazil works. Em sua coluna no Estadão da última segunda-feira (10), Pereira voltou a afirmar que a democracia sobreviveu bem a Bolsonaro, porque o STF conseguiu barrar várias iniciativas do presidente na pandemia e a CPI investigou seus crimes. Criticou quem defende que Bolsonaro ameaça a democracia, dizendo que essa tese não é testável empiricamente a não ser que o golpe ocorra.
O último argumento é claramente falso. Risco é uma probabilidade. Nenhum economista diria, por exemplo, que negócios bem-sucedidos nunca foram arriscados.
O procedimento correto, portanto, é examinar os episódios relevantes da política brasileira nos últimos três anos e discutir se eles são mais bem compreendidos pela hipótese “risco zero”, ou pela hipótese “democracia sob risco”.
Vamos ser generosos com a hipótese “risco zero” e aceitar que ela seja reformulada como “risco não maior do que o verificado em outros governos”. Vamos usar como juiz a análise dos governos anteriores em “Making Brazil Work”.
Já li o livro várias vezes e não vi nada comparável à renúncia coletiva dos chefes das Forças Armadas, ao manifesto dos empresários abortado por ameaças do governo, à tentativa de golpe do 7 de Setembro, à redistribuição de verbas publicitárias para a mídia chapa branca descrita no livro de Patrícia Campos Mello, a perseguição à imprensa, a tentativa de deslegitimar o processo eleitoral, ao conjunto da obra de Augusto Aras, à guerra permanente entre os Poderes, e, sobretudo, à politização das Forças Armadas.
A CPI, a propósito, foi mesmo uma ilha de “instituições funcionando”, mas deveria ter sido instalada um ano antes, quando teria pressionado Bolsonaro a comprar vacina; para quem morreu sem vacina, nossa democracia falhou. A CPI tampouco resultou no impeachment de Bolsonaro. Pereira sempre usou o julgamento do mensalão como exemplo de instituições saudáveis. Por esse critério, Bolsonaro terminar seu mandato no cargo é prova de desastre.
No fim de seu artigo, Pereira reclama que a tese “democracia ameaçada” pode ser usada para justificar o voto em Lula. Bem, a centro-direita ainda pode tentar construir uma candidatura presidencial viável. Se não conseguir, terá sido porque entregou a liderança da direita para o extremista Jair Bolsonaro em 2018. Naquela hora, muita gente gostou de ouvir que não estava colocando a democracia em risco quando votou em Bolsonaro. Se agora é difícil processar corretamente os fatos dos últimos três anos sem votar no Lula no segundo turno, a culpa não é nem do Lula nem dos fatos.
*Publicado na Folha