Valores rastreados foram empenhados em 2020 e 2021 e chegam a R$ 3,2 bilhões, uma amostra dos R$ 36 bilhões que compuseram as emendas de relator no período.
Instrumento essencial na relação do governo com o Congresso nos últimos dois anos, o orçamento secreto irrigou bases eleitorais de aliados do presidente Jair Bolsonaro e foi direcionado a quase metade dos parlamentares que integram Câmara e Senado — ambas as Casas e o Executivo resistiram a prestar informações detalhadas sobre os repasses, o que só vai ocorrer por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda sem todos os dados disponíveis de maneira centralizada, o que deve ocorrer até março de 2022, levantamento feito pelo Globo mapeou 290 deputados e senadores — em sua maioria, próximos ao Palácio do Planalto — que, sem transparência, distribuíram recursos pelo país. Os valores rastreados foram empenhados em 2020 e 2021 e chegam a R$ 3,2 bilhões, uma amostra dos R$ 36 bilhões que compuseram as emendas de relator no período.
Essa radiografia expõe a desigualdade provocada pelo orçamento secreto nos estados e revela como caciques do Centrão ou fiéis aliados do governo Bolsonaro foram privilegiados com o mecanismo, elaborado de uma maneira que dificulta a fiscalização. Dentre os políticos mais agraciados está o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), que, em 2020, detinha o controle de boa parte da destinação da verba, porque presidia o Senado e mantinha uma relação de proximidade com o Planalto. Foi graças ao parlamentar que o Amapá recebeu a alocação de ao menos R$ 335,9 milhões, um feito inédito. O segundo reduto com maior aporte é a Bahia, com R$ 302,2 milhões — o deputado João Carlos Barcelar (PL-BA) lidera a lista de indicações.
O cruzamento de dados foi feito a partir de planilhas do Ministério do Desenvolvimento Regional, documentos da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba(Codevasf), registros de convênios, informações da Plataforma + Brasil, notas divulgadas por prefeituras, entrevistas e publicações nas redes sociais com os próprios parlamentares alardeando as liberações de recursos.
O Piauí, estado do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP), mandachuva do Centrão, é o terceiro a receber mais recursos dentro da fatia de R$ 3 bilhões cujas indicações foi possível rastrear. O senador licenciado dividiu a maioria da sua cota entre prefeitos do seu partido para angariar apoio político, colocando os seus adversários em situação de desvantagem.
A partir dos dados, foi possível constatar outros aliados de Bolsonaro beneficiados com o orçamento secreto. Um deles é o deputado Marcos Pereira (SP), presidente do Republicanos. O parlamentar é apontando como beneficiário de uma emenda de R$ 7,5 milhões destinada a Campinas e empenhada em dezembro de 2020. O valor é informado pelo próprio site da prefeitura. Ao GLOBO, Pereira confirmou a destinação do dinheiro para a pavimentação de uma estrada, que ainda está em fase inicial de licitação, e destacou ser favorável à divulgação das informações detalhadas sobre as verbas.
Fiel escudeira de Bolsonaro no Congresso, a deputada Bia Kicis (DF), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, foi contemplada pelo orçamento secreto com ao menos R$ 7,8 milhões em duas emendas de relator destinadas a aquisições de máquinas e equipamentos para fortalecer a “capacidade produtiva” e o “desenvolvimento regional” do Distrito Federal, por onde ela pretende disputar o Senado no ano que vem. Em junho, ela fez um post junto com o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, dizendo que entregou “cinco caminhões e câmaras frias a cooperativas de pequenos agricultores do DF adquiridos por emendas parlamentares de minha autoria”. Procurada, ela não respondeu aos contatos.
‘Afeta a qualidade da democracia’
A também deputada bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP) é apontada no levantamento como contemplada com ao menos três emendas no valor de R$ 500 mil cada. Duas delas foram empenhadas para Mirandópolis e Águas de São Pedro, interior de São Paulo. O primeiro município é comandado pelo prefeito Everton Sodário, do PSL, chamado de “Bolsonaro caipira”, enquanto o segundo é o local onde ela passou a infância. Procurada, Zambelli afirmou que “quando necessário, aponta as principais demandas à liderança, ao Executivo e ao relator do Orçamento”. A benesse também alcançou novos aliados, caso do senador Romário (PL-RJ), que apadrinhou R$ 5 milhões ao prefeito de São Pedro da Aldeia (RJ), Fábio Pastel, para quem fez campanha. Romário confirmou o repasse, que, segundo ele, teve como destino a pavimentação de ruas e reforma de calçadas, mas não detalhou como obteve acesso à indicação.
Sem critérios técnicos para definir a destinação dos recursos, o orçamento secreto, cujo uso em série foi revelado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, vai parar, na ponta, em prefeituras governadas por aliados de governistas. Segundo especialistas, os empenhos são usados como propaganda política antecipada, levando a um desequilíbrio entre os partidos que, ao fim, pode prejudicar a democracia.
— Isso afeta a qualidade da democracia na medida em que não mantém o princípio da distribuição igualitária de recursos e de condições relativas à disputa eleitoral — analisa o cientista político José Álvaro Moisés, da USP.