Há quem acredite que um idioma em específico, ou a linguagem em geral requer algum tipo de formalidade.
Não me incluo entre estes, que parecem esquecer que os idiomas surgem precisamente das variações de uma formalidade qualquer.
O português, por exemplo, que tanto insistem que é ofendido por Lula, nada mais é que um desvio vulgar, ou plebeius do latim literato ou eruditus.
Em outras palavras, o português que hoje é rei na boca dos doutores, já foi plebeu na boca do povo.
Pessoalmente, me encanto mais pelas vogais do que pelas consoantes.
As vogais são mais suaves e emotivas, ao passo que as consoantes são muito sérias e racionais.
As vogais garantem a expressão dos sentidos, são elas que exclamam e conclamam.
Uma sequência de “aaa(s)” pode transmitir alegria, tristeza ou surpresa; mas pode também passar uma reclamação, ou indignação.
Já as consoantes coitadas, difícil seria primeiramente achar alguma sequência pronunciável. Uma série de “ttt(s)”, por exemplo, não permite uma continuidade, e é preciso pronunciar cada “t” separadamente em uma monotonia interminável.
Misturadas então, sem uma vogalzinha no meio, as consoantes se tornam auditivamente insuportáveis, como a combinação “schl” comum nos idiomas germânicos. Por falar nos germânicos, as palavras são uma fileira de consoantes com uma vogal aqui e outra acolá.
Evidente que nem só de vogais, ou apenas de consoantes se formam palavras. Mas tal composição carece um pouco de harmonia.
Não vejo necessidade em não ter um “e”, senão um “i” em um pneu, num eucalipto, ou num advogado.
Soa melhor aos ouvidos privarmo-nos de mais uma vogal nas palavras?
De fato, a solução encontrada, em alguns casos, foi não de enriquecer uma palavra com mais uma vogal, mas de castrá-la de uma consoante.
O que era facto, passou a ser fato, ou se antes alguém era amnistiado, hoje o é anistiado.
De uma maneira ou de outra, já me parece uma vitória tanto para as línguas que são obrigadas a se embolar na boca para pronunciar, quanto para os ouvidos aos quais são impostos a ouvir.
Como grande conciliador que é, creio que o presidente Lula nos faz um favor ao falar adevogado, e não “a*dv*ogado”.
Não por ele em si como locutor, ou nós como ouvintes, mas por esse “d” com aquele “v” que aparentam tão descompassados mesmo que tão grudados um no outro.
Podia até ser um “i”, em vez do “e”, como em “advogado”, contanto que coloquemos ali uma vogal pra mediar as duas consoantes que normalmente soam tão adversária uma à outra.
Efeitos auditivos à parte, o que guarda essa discussão vai um pouco além de preciosismos gramaticais.
De fato, a própria gramática, ou as normas gramaticais de alguma estrutura de linguagem não surgem com a mesma naturalidade que a própria manifestação linguística humana.
Se a linguagem é um instrumento orgânico que aparece como uma das maneiras pela qual humanos procuram se expressar, isto é, externalizar algo que é interior a nós mesmos para o mundo que dividimos, a gramática surge como uma normatização dessa forma de expressão.
Há, portanto, uma grave distinção entre aquilo que emerge internamente de nosso âmago humano como manifestação de nossa humanidade inerente, e aquilo que nos é imposto externamente como forma de controle sobre o que, e como devemos nos manifestar.
Ou seja, uma coisa é linguagem como forma de exteriorização de nossos modos e formas de ser e viver, enquanto, outra coisa consiste na internalização de como devemos ser, ou como devemos viver.
Não obstante, o mesmo fenômeno pode ser observado quando tratamos do surgimento da concepção de uma lei.
Por um lado, um conjunto de atividades cotidianas se transformam em prática que, por sua vez, se transmutam em hábitos até finalmente serem consagradas como normas dentro de uma comunidade onde tais atividades são internamente utilizadas e vivenciadas.
Por outro lado, quando um conjunto de leis, ou normas institucionalizadas se tornam forçosamente impostas por um ente superiormente e externamente posicionado à comunidade, as atividades comunitárias perdem seu caráter orgânico de surgimento e aplicação, pois não aparecem desde o seio interno de uma comunidade, mas do arbítrio externo de um soberano qualquer, como um Rei, um Imperador, ou um Congresso representativo cada vez menos representante de seus representados.
Quando o plebeu romano utiliza de um latim coloquial, não quer dizer que essa forma de latim esteja “errada”, apenas que não está em conformidade com o latim patrício, uniformemente convencionado desde o Senado Romano.
O modo de falar, escrever, ou comunicar do latim plebeu expressa o cotidiano da atividade e da prática comunitária que, caso houvesse qualquer tipo de unicidade com a prática patrícia, em nada diferiria do modo de falar, de escrever ou de comunicar do latim patrício.
Todavia, se faz necessário demarcar um distanciamento linguístico formal entre patrícios e plebeus não somente para posicionar ambos os grupos como distintos, mas para alertar a ambos sobre aqueles que determinam as leis e aquele que obedecem às leis.
Enquanto tal diferenciação entre manifestação orgânica interior e assimilação impositiva exterior persistir, continuaremos a rir do “dibre” e a aplaudir o “drible”, ou a chacotear do “adevogado” e reverenciar o “advogado”.
*Gabriel F. Barbosa é formado em administração pública. Tem mestrado em política e gestão pública pela Georgetown University, nos EUA/Viomundo