Segundo reportagem do Estadão, Cartório de Brazlândia ocultou informações de escritura pública.
A Corregedoria do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) vai analisar a omissão de dados do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e de sua mulher, a dentista Fernanda Antunes Bolsonaro, na escritura pública da compra de uma casa de R$ 6 milhões, em Brasília. Como revelou o Estadão, o cartório do 4.º Ofício de Notas de Brazlândia escondeu as informações. As tarjas encobrindo os números de documentos pessoais e a renda mensal do casal foram colocadas na escritura na sexta-feira, 5.
A censura de 18 trechos do documento não encontra respaldo nas leis que tratam de registros públicos. O argumento do tabelião Allan Guerra Nunes, titular do cartório e também presidente da Associação de Notários e Registradores do Distrito Federal (Anoreg-DF), é que deve haver sigilo sobre dados bancários e fiscais.
A iniciativa, porém, não consta da legislação e representa tratamento diferenciado ao filho do presidente Jair Bolsonaro. Nunes disse que, se assim não procedesse, poderia estar cometendo crime de violação ao sigilo bancário e fiscal, o que foi descartado por especialistas ouvidos pelo Estadão. As informações foram incluídas na escritura pelos próprios compradores.
“A Corregedoria da Justiça do TJDFT informa que tomou conhecimento do fato, via meios de comunicação, e irá analisar o caso a fim de adotar as medidas, porventura, cabíveis”, disse a entidade, nesta segunda-feira, 8, ao Estadão. A reportagem havia solicitado uma posição do tribunal ainda na sexta-feira, 5.
Pelas leis brasileiras, a fiscalização sobre atividade de cartórios e seus titulares é feita por tribunais de Justiça dos Estados ou do Distrito Federal. Caso avalie como necessário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também tem poder para iniciar a apuração.
O Estadão questionou o CNJ para saber se o colegiado deve investigar a omissão dos dados de Flávio. “A Corregedoria Nacional esclarece que não pode se pronunciar a respeito dos fatos notificados, por força do disposto no art. 36, inciso III da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman)”, respondeu o órgão.
Nos bastidores, integrantes do CNJ observam que uma eventual ação do conselho deve ser excepcional, apenas quando o tribunal competente não agir.
Ministros de tribunais superiores ouvidos reservadamente pela reportagem também condenaram a atitude do cartório. Para os magistrados, a omissão dos dados em uma escritura pública pode caracterizar improbidade administrativa e ser investigada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e pelo CNJ.
O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), classificou como “condenável” o ato do cartório. “É tudo muito ruim em termos de avanço cultural. A boa política pagou um preço incrível, abandonando a transparência e a publicidade. Algo condenável a todos os títulos”, afirmou Marco Aurélio ao Estadão, ainda no sábado, 6.
“Vem-nos da Constituição Federal, do artigo 37, que atos administrativos, como no caso o ato do cartório, são públicos, visando ao acompanhamento pelos contribuintes e a busca de fiscalização que deságue na eficiência. É incompreensível a omissão. E por quê? Por que omitir? Há alguma coisa realmente que motiva esse ato, porque nada surge sem uma causa”, disse o ministro do Supremo.
O tabelião, por sua vez, disse ao Estadão que essa foi a primeira vez que tarjou uma escritura. “Foi o primeiro caso”, afirmou Nunes, negando ter havido tratamento privilegiado ao filho de Bolsonaro. “Zero de motivação política, nenhuma. Não tenho nenhum interesse político nesse caso”, declarou.
Em um primeiro contato, o tabelião não soube explicar em qual norma embasou sua decisão. Mais tarde, em nota, Nunes afirmou que as informações são protegidas pela Lei 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras. A regra, porém, não se aplica a cartórios de notas. “Ele (Flávio) não me pediu nada. Quem decidiu colocar a tarja fui eu. Quando fui analisar o conteúdo da escritura, acidentalmente tem essa informação da renda”, disse o dono do cartório.
Nunes explicou a razão de também ter omitido números de documentos de identificação pessoal. “Se hoje me pedirem cópia de escritura com financiamento bancário, eu vou omitir os dados da pessoa”, observou ele. “Não há nenhum tratamento privilegiado, de maneira alguma.”
O ato do cartorário não sofreu críticas da Associação Nacional de Notários e Registradores, que congrega todos os Estados e o Distrito Federal. A entidade disse haver autonomia de administração das unidades pelos titulares da delegação. Da mesma forma, o Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil (CNB) informou que todo tabelião “possui independência jurídica e autonomia para o gerenciamento administrativo e financeiro de sua unidade”.
No caso do titular do 4º Ofício de Notas de Brazlândia, o CNB disse que, ao omitir as informações da escritura pública, Nunes considerou a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), “que visa a preservar dados sensíveis dos cidadãos, entre eles os sigilos fiscal e bancário, tema que está em estudos e processo de implementação pelos notários e registradores do país”. A lei, no entanto, não foi mencionada pelo próprio tabelião nas duas ocasiões em que conversou com a reportagem na última sexta-feira.
O tabelião Ivanildo Figueiredo, titular do 8º Tabelionato de Notas do Recife e professor de Direito Notarial na Faculdade de Direito, criticou a posição do Colégio Notarial do Brasil. “A autonomia e independência de qualquer tabelião se resume a gerenciamento administrativo e financeiro, e não ao conteúdo ou forma dos atos notariais”, disse Figueiredo ao Estadão. “A posição do órgão de classe (CNB) se revela como corporativista, sem qualquer conteúdo crítico com relação à censura de uma escritura pública”.
Segundo ele, a Lei nº 6.015, de 1973, que trata dos registros públicos, prevê a publicidade de todos os atos, como escrituras. “O tabelião não tem nenhuma função de censura. Se a parte vai ao cartório e faz um ato público, esse ato é público. Qualquer pessoa pode pedir cópia desse documento. Qualquer pessoa pode ter acesso ao conteúdo desses atos. O dever é entregar a certidão como está no livro, não pode censurar”, destacou Figueiredo.
Financiamento. Para comprar o imóvel, o filho “01” de Bolsonaro financiou R$ 3,1 milhões no Banco de Brasília (BRB), com parcelas mensais de R$ 18,7 mil. As prestações representam 70% do salário líquido de Flávio como senador, de R$ 24,7 mil, como mostrou o Estadão. O salário bruto de um senador é de R$ 33.763,00, que, após os descontos, cai para R$ 24,7 mil.