Ao marcar 75 anos, a ONU (Organização das Nações Unidas) promoveu uma Assembleia Geral diferente, com discursos virtuais e uma sala em sua grande parte esvaziada. A pandemia assim exigia. Mas isso não evitou que a instituição – e o mundo – fossem poupados de um desfile de líderes que usaram o microfone internacional para disseminar desinformação, construir imagens inexistentes de seus países e vender compromissos que jamais são adotados.
O evento começou com o presidente Jair Bolsonaro chocando a comunidade internacional e mentindo sobre a situação ambiental do Brasil, inclusive com a declaração de que são os indígenas e caboclos os responsáveis pelos incêndios.
Mas aquele seria apenas o início. Depois do brasileiro, foi a vez de Donald Trump, responsável por tensões e uma guerra comercial, se apresentar como um ator responsável pela promoção da paz mundial. Ele também indicou que liderava uma mobilização contra a pandemia, escondendo que, na realidade, rejeitou a gravidade da crise por semanas, enquanto minimizava a doença.
O desfile continuou com o presidente da China, Xi Jinping. Pequim fez sua declaração de amor à ONU. Mas, se esquecendo dos graves abusos de direitos humanos no país, saiu em defesa do estado de direito e da Justiça, além dos avanços nos direitos humanos.
Vladimir Putin, presidente da Rússia que modificou a lei de seu país para permanecer no poder e acusado por europeus de envolvimento no envenenamento de opositores, defendeu seu veto no Conselho de Segurança na ONU como um instrumento para evitar o que seria “inaceitável” por alguns.
Miguel Díaz Canel Bermúdez, presidente de Cuba, foi outro líder de um regime autoritário que pediu democracia. Mas apenas na ONU. E aproveitou o palco internacional para acusar o sistema eleitoral americano de irregularidades.
Félix Antoine Tshilombo Tshisekedi, presidente da República Democrática do Congo, disse que está promovendo ações para uma melhoria na governança. Segundo o último informe da Transparência Internacional, o país é o 168o colocado entre 180 locais avaliados em termos de corrupção. Para 80% da população, propinas fazem parte da vida diária na busca por serviços públicos.
Tamim bin Hamad al-Thani, Emir do Catar e acusado pelos vizinhos de desestabilizar a região e até mesmo de financiar o terrorismo, fez um discurso para defender o estado de direito e insistir que é contra qualquer interferência na soberania de outros países.
Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas, em seu primeiro discurso na ONU em quatro anos, criticou ativistas por “tornar os direitos humanos uma arma”. A frase gerou sorrisos irônicos das demais delegações diante das acusações da própria ONU contra Duterte por conduzir o país a um massacre, sob a justificativa de lutar contra o crime.
Questionado por seus ataques contra liberdades fundamentais, Duterte alertou sobre a tentativa da oposição de tirar a legitimidade do que ele chama de “instituições democráticas”. Se não bastasse, ele usou o palco para defender sua guerra contra as drogas que já matou mais de 6 mil pessoas.
Hassan Rouhani, presidente do Irã, ignorou a repressão interna sobre sua população e optou por fazer uma analogia entre a bota do policial na nuca de George Floyd, nos EUA, e as sanções aplicadas contra os iranianos. Para Teerã, o governo americano é o símbolo da “arrogância sobre o pescoço de nações independentes”. Para uma parcela enorme da população, porém, o pé no pescoço vem também dos aiatolás e seu regime baseado na repressão.
Abdel Fattah Al-Sisi, que lidera o governo autoritário do Egito, usou seu discurso para falar da defesa da liberdade, da decisão de restabelecer o senado em seu país para “fortalecer a democracia” e ainda completou sua participação com mais uma frase despida de sentido ao declarar a importância de proteger direitos humanos. Justamente num dos regimes que aplica algumas das piores práticas em termos de censura.
Mas o mundo virtual também abriu a possibilidade para a participação de outros que talvez tivessem problemas para estar em Nova Iorque. Um deles é Nicolas Maduro, que discursa nesta quarta-feira. Ele não é reconhecido como presidente legítimo pelo governo dos EUA e acusações pesam sobre ela nas cortes americanas.
Oficialmente, é a ONU quem lhe dá sua imunidade no caso de uma viagem. Mas, ainda assim, diplomatas venezuelanos revelam à coluna que o temor era de que o governo americano encontrasse alguma brecha legal para o deter em território americano.
O desfile de regimes ditatoriais que defendem a democracia, governos opressores que falam em direitos humanos ou atores da instabilidade internacional que se apresentam como promotores da paz ofereceu ao mundo uma lição de charlatanismo e de farsa.
Seus discursos e ataques mútuos apenas explicitaram que as commodities mais escassas no planeta hoje não são vacinas, respiradores ou satélites para monitorar queimadas. Mas a falta de líderes e de uma cooperação internacional, justamente quando o mundo mais precisava de ambos. Além, claro, de vergonha na cara.
*Jamil Chade/Uol