A Pandemia do Novo Coronavírus não é um tema exclusivo de Epidemiologistas. A Pandemia do Covid-19 precipitou drásticas transformações sociais e econômicas em escala planetária e por esta razão está sujeita à apreciação de outros campos analíticos. Se por ventura acharmos que o Covid-19 é um infortúnio do acaso ou um tema exclusivamente médico-sanitário, estaríamos alienando a Medicina e as Ciências da Natureza dos próprios embates sociais e históricos. Esse tipo de raciocínio contribui para a própria falsificação da História do ser humano que é inteiramente forjada nas interações sócio-naturais na dimensão do tempo.
Por mais que Pandemias sejam eventos relativamente presentes ao longo da História da Humanidade, tais vicissitudes geram efeitos colaterais que chacoalham as estruturas de poder e do próprio sistema-Mundo. Obviamente isso expõe a novas tribulações. Analisar novos horizontes sociais, culturais e econômicos não raramente levam a um apelo à epistemologia dos processos. O Novo Coronavírus, embora fenômeno “novo” como o próprio nome diz, não escapa de contextualizações históricas. É importante lembrar que a Pandemia do Novo Coronavírus em 2020 é, antes de mais nada, um fenômeno político. E aliás, se é um fenômeno político, também é econômico. Não existe transformação econômica que não seja política e vice-versa e nenhuma destas estão livres da contextualização histórica.
Isto posto, devemos considerar que o conjunto de práticas e políticas que vieram no bojo do combate ao Covid-19 não surgiram do nada. As novas possibilidades da Globalização não só contribuíram para que o vírus se espalhasse por todo o Planeta em velocidade alucinante como também tornaram populares uma série de medidas que não seriam facilmente adotadas caso estivéssemos nas décadas de 1980 ou 1990, como a rápida difusão do uso de máscaras, o isolamento social preventivo, a higienização das mãos e dos braços e etc. A última Pandemia ocorreu há mais de um século e certamente as práticas preventivas não estavam na ordem do dia, ou seja, no linguajar popular atual. Estes conhecimentos e práticas foram resgatados por especialistas que, munidos de novos conhecimentos técnicos conseguiram em tempo recorde difundir para a Cultura de Massas globalizada o novo código de conduta sanitária requisitado. Se não tivéssemos a internet ou a popularização em escala planetária dos Meios de Comunicação, talvez os desafios no combate ao Covid-19 seriam muito maiores. Neste sentido, devemos “agradecer” que o Novo Coronavírus “resolveu” dar as caras em 2020 e não em 1985 ou 1990. Se o Covid-19 for um infortúnio do destino, não havia momento melhor que não a era Digital.
Os problemas do cenário Mundial jocosamente apelidados de “novo normal” não despertariam nenhum tipo de polêmica se o “novo normal” não estivesse sendo discutido antes de 2020 ou se o “novo normal” não se encaixasse num alinhamento sincronizado de interesses, em especial do Grande Capital. Afinal, por que o “novo normal” é importante? O “novo normal” é a expressão de um conjunto prático-teórico que se encaixa perfeitamente na ordem do dia. Do ponto de vista do poder, era necessário algum fato novo que obrigasse mudanças de hábitos em um grande número de localidades Mundo afora. Esses novos procederes se encaixam perfeitamente na conjuntura econômica Global e isso não pode ser visto como uma cadeia de eventos casuais. E isso também não pode ser visto como algo a ser “celebrado”. As mudanças que ocorrem se dão de forma a manter à fórceps a ordem como ela está e não provocar a superação do sistema-Mundo vigente. O “novo normal” é a nova forma de repressão em escala globalizada.
Se encararmos todos estes fatos como situações aleatórias podemos deixar a Sociologia, a Geografia e a História de lado porque tais ciências não teriam a menor importância, a vida do ser humano seria regida por um encadeamento de fatos randômicos que não se conversam e que não possuem interferência da consciência humana. É claro que enxergar o Mundo desta forma, se não for ingenuidade semi-religiosa é, pelo menos, má fé. E aliás, é assim que desejam certas correntes da Filosofia irracionalista que alegam a impossibilidade do ser humano em tornar inteligíveis as mudanças estruturais da História. Talvez, se jogarmos as coisas “para o alto” e ignorar a análise coesa dos fatos estaremos fazendo exatamente o que o Capital quer, uma sociedade cada vez mais alienada e acrítica. E é precisamente isso que ocorre em vários círculos acadêmicos.
Esta expressão “Reset Mundial” indica uma necessidade de redefinição e reorganização Capitalista Mundial. Qualquer indivíduo conectado com a realidade econômica do passado e do presente consegue identificar que as transformações estruturais são irrefreáveis. Não há como retroceder ao período pré-Digital. A era da informação e da automação exige um novo patamar de crescimento econômico e de conservação da ordem ao mesmo tempo. Nem sempre uma coisa caminha junto com a outra, daí o foco dos problemas. Os objetivos de manutenção da ordem não são obtidos na ausência de um novo código de hábitos difundidos em escala global como o isolamento projetado da sociedade, o desmantelamento das relações sociais perigosas para o sistema (aquelas forjadas na unidade na diversidade) e na superexploração do Capital variável, que passa a confrontar o chamado Capital constante nas forças produtivas.
A tecnologia e a automação como previsto por Marx não gera Mais-valia. Isso não significa que a lógica de acumulação, repressão e dominação não possa encontrar novas válvulas de escape. Se houver uma válvula de escape para o atual estágio do Capitalismo marcado pela evolução tecnológica extraordinária da Quarta Revolução Industrial, esta válvula só poderá ser atingida no bojo de uma era de regimes totalitários de novo tipo. Nunca a análise do sistema de Pan-Óptico de Michel Foucault fez tanto sentido para o que vivemos na atualidade. Foucault decifrara que a lógica da repressão em ascenso era uma tendência da Ordem do Capital. Esta lógica privilegia um amplo sistema de vigilância e controle social, temas tão em voga na atualidade. O Mundo Digital criou um imenso banco de dados para um enorme Pan-Óptico global. Foucault foi certeiro ao identificar que estas tendências estavam em ascenso. Na era das redes sociais e da Aldeia Global, a política do “Vigiar e Punir” ganha desenvoltura inédita. Que momento melhor para estabelecer o “novo normal” que não este atual? Diante de uma situação exógena como o Novo Coronavírus, há uma janela valiosa de contenção dos ânimos Mundo afora. Que tal o medo? Que tal o encarceramento coletivo? Que tal a difusão irrefreável dos softwares e meios de comunicação? Que tal o Big Data? Que tal o Vigiar e Punir?
É importante observar que o Novo Coronavírus é uma janela de oportunidade maliciosa, um veículo pelo qual é possível empurrar uma cultura de distanciamento social na mesma proporção em que a tecnologia amplia a sua capilaridade na Ordem do Capital monopolista global. Um fato inconteste é que sendo oportunidade valiosa ou não, no timing correto ou não, o palavra de ordem “Reset Mundial” já ocupa espaço no vocabulário do poder global desde ao menos 2014, se quisermos utilizar fatos de curto prazo para corroborar o que se vê na atualidade. O aceno para uma situação nova em larga escala é um objetivo perseguido pelo Fundo Monetário Internacional. Esta expressão que já ganhou o vocabulário de muitos Mundo afora é a válvula de escape que o Capital financeiro em crise desejava atingir. Não podemos assistir à tudo isso sem espírito crítico. Todas estas mudanças e o famigerado “novo normal” não estão sendo empurrados goela abaixo porque seriam práticas “republicanas”. Estas práticas são o veículo pelo qual a sociedade mundial será conduzida a um cabresto globalizado, um cenário onde a Ordem do Capital mantém-se intacta. O verdadeiro “novo normal” deveria ser aquele que pudéssemos superar o Capital e não reforçá-lo.